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Chega traz a guerra cultural — e começa pelas escolas

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OChega já vinha ensaiando uma réplica portuguesa da guerra cultural que se intensificou no ano passado com a morte do afro-americano George Floyd sob o joelho de um agente da polícia de Mineápolis. O assassínio motivou protestos em todo o mundo, que pediam o combate ao racismo nas forças de segurança e o derrube de estátuas de protagonistas de um passado colonial. Prova dos ensaios do Chega foi a formalização da candidatura de Nuno Graciano a Lisboa, a maior autarquia do país, junto ao Padrão dos Descobrimentos. O antigo apresentador de televisão disse, em março, que ele e o partido que o apoia não se envergonham da história de Portugal. No mês anterior, o deputado socialista Ascenso Simões tinha defendido a remoção do monumento e o Chega acusou-o então de “escrever aberrações”. Pelo meio, André Ventura, presidente do partido, mandou uma deputada e um ativista antirracismo “para as suas terras”, chamou “bandidos” a uma família do Bairro da Jamaica, no Seixal, e esforçou-se por relativizar ou tentar esvaziar o eventual móbil racista de mortes e perseguições em Portugal.

Agora fica claro que o Chega pretende travar essa guerra cultural através de uma reforma dos ensinos básico e secundário. Se nos EUA os republicanos alinhados com Trump espoletam a revolta contra a formação de professores para aulas mais “inclusivas”, por cá o documento do Chega a que o Expresso teve acesso propõe “a primeira grande reforma que rompe com meio século de democracia sem pluralismo nas políticas de ensino”. Os educadores e professores “jamais serão confundidos, na presente reforma, com sujeitos politicamente manipuláveis” por partidos “com vocação de poder”. E que partidos são esses? O PS e o PSD, “subjugados ao forte controlo das políticas de ensino imposto pelo PCP, através da ação sindical, ou pelo BE, através dos mais variados ativismos politizados”.

O Chega não se coloca entre os partidos “com vocação de poder”, apesar de no último congresso ter assumido inequivocamente a intenção de “governar Portugal”. Em vez disso, nesta reforma o partido “estende uma mão moral, cívica, social e política” aos educadores e professores. O objetivo é transformá-los numa “renovada força comum capaz de se libertar das condições humilhantes em que exercem a sua nobre função de ensinar”. A reforma não apresenta muitas propostas concretas, antes “princípios gerais, que depois serão concretizados com propostas legislativas” a apresentar em momentos que o partido considere “oportunos”, diz ao Expresso Gabriel Mithá Ribeiro, um dos vice-presidentes e o coordenador-geral do gabinete de estudos do Chega.

O PRETEXTO DE CIDADANIA

A divulgação da reforma não podia ter calhado em melhor altura, quando se sabe que os pais de dois irmãos de Famalicão avançaram com uma providência cautelar para, mais uma vez, tentarem impedir que os filhos sejam chumbados por não frequentarem a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. “A recusa taxativa da existência da disciplina e afins está subjacente” na reforma, diz Mithá Ribeiro. Ventura condenou esta semana, no Parlamento, o que apelidou de “atitude inquisitória do Ministério da Educação, que insiste em chumbar alunos de Famalicão”. A reforma sai “em defesa dos educadores e professores, contra uma classe política intrometida e parasita”, ao mesmo tempo que preconiza que o desrespeito pelos professores seja “motivo suficiente para um aluno reprovar de ano”. Afinal, defende o Chega, o modelo atual “protege a transição de ano de alunos parasitas e indisciplinados”.

A defesa intransigente da transição de ano dos dois alunos de Famalicão contrasta com a recusa das “intermináveis possibilidades de recuperação”, que premeiam “a procrastinação, a falta de esforço, a persistência na quebra de normas e regras”. A reforma visa promover “os ideais de hierarquia, autoridade e ordem”, para que educadores e professores passem a ser “soberanos” nas salas de aula face a alunos que, “não poucas vezes, demonstram não possuir qualquer amor à verdade”. “A palavra dos estudantes não deve ter o mesmo peso” e “a autoridade moral da palavra do professor deve prevalecer”, até porque, avalia o Chega, frequentemente os alunos orquestram “verdadeiros conluios testemunhais contra o professor, muitas vezes o único adulto na sala de aula”. O partido pretende transferir os encargos burocráticos com a indisciplina para “os alunos prevaricadores e encarregados de educação”.

Nas poucas propostas concretas que avança, a reforma considera fundamental introduzir uma “simplificação drástica da classificação dos resultados escolares”, com “a transversalidade da classificação de 0 a 20 valores” desde o ensino básico, e o alargamento dos exames nacionais “o mais possível às mais variadas disciplinas do final dos primeiro, segundo e terceiro ciclos e secundário”. Tudo para evitar uma “inflação abusiva do mercado de trabalho” e para que “muito em especial o ensino público” deixe de ser “um labirinto protetor, porém docilmente disfarçado, de uma casta de rentistas assaltantes do Orçamento do Estado, protegidos pela tutela ministerial”. E para pôr termo à “invasão violenta” dos estabelecimentos de ensino por sindicatos, partidos, Governos, Assembleia da República e organismos internacionais.

A reforma proposta pelo Chega parte do diagnóstico de “um modelo de ensino em falência”, cujas consequências são, entre outras, a “anarquia na avaliação”, a “doutrinação ideológica” e a “desmotivação e depressões num corpo docente dominantemente feminino”. “Infelizmente, não houve possibilidade de fazer uma apresentação formal” da reforma no Conselho Nacional do fim de semana passado, porque “a discussão do programa político absorveu quase tudo”, lamenta Mithá Ribeiro. Com esta reforma, o Chega também estende a mão aos restantes partidos da direita parlamentar: “Penso que é difícil ter um outro ponto tão forte para uma ampla convergência e debate.”

O que muda e o que cai do novo programa do Chega em expresso.pt

 

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