Início Educação 8 euros por hora | O “sentido de missão” dos professores com...

8 euros por hora | O “sentido de missão” dos professores com horas extras manteve as escolas a funcionar

7150
2

É quinta-feira e Pedro Vidinha já está na Secundária José Afonso, em Loures, desde as 8h00. Só mais de 12 horas volvidas vai abandonar, em definitivo, os portões da escola. Às 22h30 termina a última aula do dia. É assim, todas as semanas, desde que começou a acumular turmas do ensino secundário com um curso de Educação e Formação de Adultos, em horário nocturno.

Este professor dá aulas de Informática, uma das disciplinas mais atingidas pela falta de docentes, fenómeno que marcou o 1.º período do ano lectivo. As estimativas dos sindicatos apontam para que, neste momento, ainda haja pelo menos 10 mil alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina. O número baixou, ainda assim, para metade, nas últimas semanas. A solução na maioria das escolas foi, como no caso de Vidinha, atribuir horas extraordinárias de aulas aos professores que já estavam ao serviço.

O ano lectivo arrancou com três horários completos de Informática por preencher na Secundária José Afonso. A meio de Outubro, um dos lugares continuava por preencher, esgotadas todas as opções, incluindo a contratação directa pela escola. Como estavam em causa turmas do ensino profissional, cujo número de horas de aulas previstas tem mesmo de ser cumprido para que os alunos tenham o seu certificado de formação, os professores de Informática decidiram distribuir entre si as turmas ainda sem docente.

A intenção foi evitar, por um lado, mais atrasos nas aprendizagens dos alunos, mas também que um colega que pudesse ser colocado mais tarde tivesse de repor todos estes tempos lectivos atrasados em contra-relógio. “O director falou comigo e disse: ‘Temos este problema’”, conta Pedro Vidinha, que é coordenador do grupo de Informática na escola de Loures. Foram os próprios docentes que propuseram esta solução. “Só o fizemos”, prossegue o professor, “porque existe uma cultura de escola construtiva.” “Caso contrário, não o faríamos. Estamos todos esgotados”. A expressão há-de repetir-se no discurso de outros docentes.

O recurso às horas extraordinárias dos professores que já estão ao serviço das escolas tem sido uma das estratégias sugeridas pela task force criada pelo Ministério da Educação, que inclui elementos da Direcção-Geral de Estabelecimentos de Ensino e da Direcção-Geral da Administração Escolar, para trabalhar directamente com as escolas, de modo a resolver as situações de carência de docentes. A solução já tinha sido utilizada nos últimos anos lectivos. A falta de docentes tem sido um problema crescente. Todavia, este ano ganhou nova visibilidade, porque a Federação Nacional de Professores (Fenprof) convocou uma greve, que começou a 22 de Novembro, a este trabalho suplementar.

A atribuição de horas extraordinárias a muitos professores parece ter contribuído para uma diminuição considerável do número de horas de aulas ainda por preencher nas últimas semanas. Entre 6 e 10 de Dezembro, foram a concurso 2949 horas lectivas. Na semana anterior, tinham sido 4400.

Ainda não há números definitivos da última semana do período, mas a tendência continuou a ser de “diminuição dos horários a concurso”, contextualiza o dirigente da Fenprof Vítor Godinho, que acompanha a contratação de professores. Parte deste fenómeno deve-se “seguramente à atribuição de horas extraordinárias”, considera. No entanto, não deve retirar-se da equação um outro motivo: com a aproximação do final do período, muitos directores “optaram por não colocar os horários em oferta de escola”, sabendo que não encontrariam docentes para eles nesta fase. “Só em Janeiro saberemos ao certo.”

Apesar desta diminuição do número de horários por preencher, os números apontam para que haja ainda cerca de 10 mil alunos sem aulas no final do primeiro período, segundo a estimativa da Fenprof – metade do que se verificava há um mês. Os estudantes vão agora de férias até 10 de Janeiro, uma semana depois do inicialmente previsto, fruto das mudanças entretanto introduzidas no calendário escolar, devido à evolução recente da pandemia de covid-19.

“Não compensa”

Pedro Vidinha não passa as mais de 12 horas do horário de quinta-feira a dar aulas na secundária de Loures. O seu dia divide-se em duas partes e tem boa parte da tarde livre, entre as 13h50 e as 19h15. As terças-feiras também são exigentes – entra às 8h45 e sai às 21h45, com um intervalo semelhante ao de quinta-feira pelo meio. Não raras vezes é “preciso parar para descansar” e não consegue fazer o trabalho de preparação e avaliação dos alunos nesse período. “Se não parar, não aguento as aulas da noite.”

“Estamos a trabalhar com o cérebro. E se o cérebro estiver sempre a ser usado, vai ficar com cansaço”, desabafa Raquel Delgado, professora no agrupamento de escolas de Silves. Dá aulas de Física e Química a três níveis de ensino (7.º, 8.º e 9.º anos) e a um Curso de Educação e Formação (CEF), além da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento a alunos do 3.º ciclo.

Essa profusão de matérias para ensinar é “difícil de gerir” e ficou ainda mais complicada quando ao seu horário de 22 horas lectivas semanais foram acrescentadas, no início de Novembro, mais quatro horas de aulas. Agora, Raquel Delgado “nunca” passa um fim-de-semana “sem trabalhar para a escola”. Para lá dos 26 tempos lectivos que passou a ter no seu horário, há “muito mais horas de trabalho” em casa, a preparar aulas, elaborar e corrigir testes, e também nas reuniões de conselho de turma, de onde saem as avaliações dos estudantes: “Isto esgota as pessoas.”

Habitualmente, o tempo não lectivo dos professores é considerado como horário de trabalho, até ao limite de 35 horas semanais, comum a toda a função pública. Porém, no caso das horas extraordinárias, a lei não prevê uma compensação suplementar pelo trabalho que é feito para lá da sala de aula, ou seja, os docentes que estão a ser chamados para ocupar as vagas deixadas em aberto são pagos apenas pelo tempo em que, efectivamente, estão diante dos seus alunos.

De fora do cálculo do suplemento salarial fica todo o trabalho complementar, mas também dias de feriado, como os dois que houve em Dezembro, ou as férias, como as que agora começam. “Se os alunos estão de férias, eu não recebo, mas não deixo de ter de ir às reuniões de avaliação”, observa Fernanda Mimoso, também professora com horas extraordinárias na Escola Secundária José Afonso, em Loures.

Os docentes lamentam igualmente o valor que recebem como compensação pelo trabalho adicional que lhes está a ser atribuído. As horas extras são pagas, como no resto da administração pública, a 50% do salário-base – 25%, apenas na primeira hora. Mas o adicional no vencimento implica para a maioria uma subida de escalão do IRS. “As horas ficam quase todas nos descontos”, diz Raquel Delgado, professora em Silves.

Para um professor contratado, como é o caso de Pedro Vidinha e da maioria dos que partilharam as suas histórias com o PÚBLICO, o valor líquido recebido por cada hora extraordinária de aulas não chega a 8 euros. “Não compensa minimamente”, diz. Desde que lecciona a turma do ensino profissional, recebe cerca 120 euros extras no final do mês.

Esse dinheiro pode não parecer muito, mas para quem está a viver a mais de 350 quilómetros de casa e tem duas habitações para pagar “já ajuda alguma coisa”. Quem o diz é Branca Esteves, docente no agrupamento de escolas de Sampaio, em Sesimbra. Esta professora de Inglês e Alemão é de Gondomar, onde vivem o marido e os dois filhos, de 9 e 11 anos. O quarto que arrenda em Sesimbra custa 250 euros por mês. O pagamento das horas extraordinárias ajuda a compor o orçamento.

“Como tenho de pagar duas casas, aproveito”, conta, antes de explicar que foi a própria quem “fez a sugestão” à direcção da escola para que lhe atribuísse horas extraordinárias. É o terceiro ano lectivo em que faz este pedido em outras tantas escolas em que ficou colocada como professora contratada.

Como “a vida familiar já está toda de pernas para o ar”, fruto da distância, o trabalho suplementar não é um problema para o seu quotidiano. Pelo contrário, diz: “Acaba por me fazer bem emocionalmente, porque assim tenho o meu tempo todo tomado.”

Branca Esteves é professora contratada e foi colocada na escola de Sesimbra no início do ano, com um horário completo. Ao horário de 22 horas semanais foram-lhe acrescentadas, em meados de Novembro, mais quatro, ou seja, mais uma turma, à qual ensina Inglês. Os alunos estiveram sem aulas durante mais de um mês, porque a professora com que tinham começado o ano lectivo, também contratada, entrou em baixa médica: “Não aguentou.”

Trabalho imposto?

Foi para precaver situações “limite” como esta que a Fenprof entregou, no mês passado, o pré-aviso de greve às horas extraordinárias, explicou na altura a organização sindical. A federação de professores veio, entretanto, acusar o Ministério da Educação de estar a “impor” às escolas o recurso a horas extraordinárias.

A tutela negou as acusações. “Apesar de legalmente existir a possibilidade de atribuição de horas extraordinárias de modo unilateral, a indicação dada pela Administração Escolar às escolas é de que a atribuição de horas extraordinárias deve ocorrer sempre com o acordo do trabalhador”, garantiu o ministério, em resposta dada por escrito ao PÚBLICO.

Nenhum dos professores que aceitaram partilhar a sua história afirma que as horas extraordinárias lhe foram impostas. Apenas numa situação uma docente relata divergências com a direcção da escola por causa do serviço adicional. Foi também o único caso em que foi usado o direito à greve. Já a Fenprof não tem números da adesão ao protesto.

Otília Marques, professora no agrupamento de escolas Gil Vicente, em Lisboa, não tem dúvidas: o pré-aviso de greve “foi a [sua] tábua de salvação”. “Estava numa situação de ansiedade tal que, se não tivesse a greve, não teria outra hipótese que não fosse recorrer à baixa médica.”

Começou o ano lectivo com cinco turmas, distribuídas por três níveis de ensino (7.º, 8.º e 9.º anos). No 9.º ano, já tinha uma hora suplementar, incluída no plano de recuperação das aprendizagens afectadas pela pandemia.

Em Outubro, o seu horário passou a ter mais uma turma, do 12.º ano, com uma carga lectiva de cinco horas semanais. “Uma coisa era atribuírem-me mais um 9.º. ano, outra coisa foi um 12.º ano. Implicava, pelo menos, dez horas semanais de preparação das aulas. Além disso, é um ano de exame, depois de dois confinamentos. Os alunos precisavam ainda de mais trabalho”, explica Otília Marques.

“Entrei em pânico.” Garante ter informado a escola da sua indisponibilidade, depois de uma conversa inicial com a coordenadora de Português, mas ainda assim o serviço foi-lhe entregue. “Tendo obtido autorização do senhor director-geral dos Estabelecimentos Escolares para atribuição das respectivas horas, comuniquei às docentes, por email, de que a partir dessa data a turma faria parte do seu horário, como horas extraordinárias”, justifica a directora do agrupamento Gil Vicente, Ana Duarte.

A lei não permite recusar o trabalho extraordinário. Otília Marques ainda foi a uma aula com a “nova” turma. “Expliquei aos alunos a situação e disse-lhes que não ia ficar a dar-lhes aulas”, explica. Fez greve, desde então, a todas as horas adicionais, continuando a dar aulas às outras cinco turmas com que tinha iniciado o ano. “Não é uma questão de má vontade, não tenho alternativa. Estou esgotada”, afiança.

A palavra perpassa os discursos da generalidade dos professores que conversaram com o PÚBLICO. O que os leva então a aceitar este trabalho adicional, na maioria dos casos sem protestos? O “sentido de missão”, defende Sílvia Timóteo, professora no agrupamento de escolas de Agualva-Mira Sintra, em Sintra.

“Não sou grande exemplo de sacrifício”, contextualiza esta docente de Português. Face à vaga de um horário de Matemática na escola, acabou por aceitar as horas que seriam de direcção de turma. São dois tempos por semana, usados para o atendimento de alunos e encarregados de educação e trabalho burocrático, incluindo o lançamento das notas.

Nas primeiras semanas do ano lectivo chegou a fazer esse trabalho pro bono. Contudo, quando percebeu que o motivo da ausência do professor – doença prolongada – duraria mais tempo, disse que não podia continuar. Passou então a ser paga, com retroactivos ao início do ano.

Fernanda Mimoso, que dá aulas de Português e Espanhol, na Escola Secundária José Afonso, em Loures, dá uma justificação semelhante para o facto de ter aceitado, sem contestação, as cinco horas adicionais de trabalho que passou a fazer a partir do mês passado. Disse que sim, “primeiro, pelos alunos”. “Não gostava de ter um filho meu que ficasse um mês inteiro sem Português. É uma disciplina nuclear, ainda mais em ano de exame nacional.” A isso junta-se o mesmo “espírito de missão” da colega de Sintra. “É preciso gostar muito daquilo que se faz e eu gosto. Ser professora é ser mais do que um funcionário público.”

Público

2 COMENTÁRIOS

  1. voltamos à caça das horas extraordinárias dos anos 80 deixando em casa professores muito mais aptos para o cumprimento de funções. Esses que se dizem exaustos ainda conseguem acumular com um trabalhinho lá fora chegando facilmente aos 4.000 euros brutos mensais… Assim vai Portugal!

  2. ninguem obriga a lecionar horas extraordinarias, pq se queixam?
    podem ser obrigados a aceitar , mas lecioná-las ninguem obriga, nem sequer é preciso justificar a falta

    Se pagarem 80€/hora aceito
    Não há dinheiro, não há palhaço.

Comments are closed.