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Ups, a internet foi abaixo

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Aulas à distância é uma denominação que não faz sentido. As aulas, meus caros, nunca estiveram tão próximas: elas são dadas na intimidade das nossas casas e nos sítios mais insólitos. Quantas vezes os meus filhos não levaram as aulas com os professores e a turma toda para a casa de banho? Nem vos digo. Tenho professores de todos os ciclos e universitários a falaram em todas as divisões do meu lar, a invadirem propriedade alheia com a sua sabedoria, infinita paciência e variados tons de voz. Passar de uma divisão para outra de pijama, é como sair à rua de pijama e ter miúdos dos 7 aos 20 (e pais) a assistirem ao espetáculo. “Ó Ruizinho, vai chamar o pai para te ajudar porque a tua imagem não aparece”. “O meu pai está a dormir, professora, e diz que não vem”. É o grau zero da privacidade.

Cidadãos, também é preciso denunciar isto: a liberdade de expressão está em casa. Com esta invasão dos vários sistemas de ensino na nossa propriedade, estamos condicionados ao que dizemos, como seja, descompor os miúdos, discutir, dizer mal de coisas e de pessoas ou gritar um simples “tragam-me papel higiénico!”, sem correr o risco de que este apelo desesperado chegue aos ouvidos de ilustres professores de Direito ou da querida professora Margarida e da sua família. As aulas à distância são uma das ameaças mais flagrantes ao recato das nossas casas depois do IMI. Nem o regime soviético conseguiu tanto tão facilmente.

Acordo com os professores aos gritos, a fazerem a chamada e a pedirem aos miúdos para ligarem as câmaras. “Estás muito atrasado! O que é que aconteceu?!”. E a lata dos miúdos não tem fim: “Esqueci-me, professora…”. De quê? “Da aula”. E a internet, que passa a vida a cair? “Desculpe professora, a internet foi a abaixo outra vez”. Quase sempre entre as 8h30 e a 10h. Se há uns tempos “o cão comeu o trabalho de casa” era a desculpa master, agora é o ficheiro que não carregou porque a internet está fraca.

Dos cães passámos para as operadoras. Dia após dia, de quinze em quinze dias, é vê-los, assim, ensonados, a exibirem a desarrumação dos quartos, os cabelos em pé, os olhos a meia-haste e os dentes por lavar. Um espetáculo lastimável, asseguro-vos.
Mas se nestas aulas dos mais velhos os pobres professores fazem um esforço titânico para manter os miúdos acordados para além da escuridão das câmaras, nas aulas do primeiro ciclo reina o circo. Cidadãos, é fundamental que daqui a 10 anos – quando o governo concluir um plano de reabertura das escolas – se faça a devida homenagem aos professores do primeiro ciclo. São estes os homens e as mulheres que travam diariamente uma batalha com os nossos filhos mais novos – uns nem sabem ler – e que se mantêm estoicos quando aparecem todos ao mesmo tempo a mostrarem o cão, o feijão que já cresceu, o bebé mais novo, o desenho ou o periquito.

Numa gritaria ensurdecedora. Ensinar contas de subtrair nestas parcas condições, através de casa, com filhos e bebés a chorar, é uma espécie de guerra contra o terror. Merecem no mínimo um monumento com a legenda: “Aos nossos valentes. Professor do primeiro ciclo desconhecido 2020 -2030”. Bem hajam. E nós também.

Dinheiro Vivo