Início Sociedade Única criança portuguesa afetada pela síndrome misteriosa: “O vírus passou por ele”

Única criança portuguesa afetada pela síndrome misteriosa: “O vírus passou por ele”

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Houve momentos em que o medo foi tão grande que o ar fugiu. Porque o ar escasseia não só a quem tem de ser ventilado, mas a quem lhe segura a mão. E nas últimas semanas, o ar faltou várias vezes a Madalena. A mãe chorou, o pai chorou, mas Francisco não. O rapaz de 13 anos manteve a serenidade enquanto travava uma batalha pela vida contra a misteriosa doença pediátrica associada à covid-19 que preocupa médicos em todo o mundo.

Tudo começou quando, a 12 de março, Madalena teve febre, dores no corpo, perdeu o paladar e o olfato. Rapidamente percebeu o que se passava, já que uma colega do trabalho tinha sido infetada pelo novo coronavírus. Isolou-se no quarto e os dois filhos, Francisco e Leonor, de oito anos, ficaram em casa, mas a cargo do pai. A mãe manteve a quarentena durante 15 dias e fez o teste, que confirmou a infeção. Quando tudo parecia ter acabado, afinal nem tinha ainda começado: Francisco adoeceu.

Na madrugada de 18 de abril, o filho acordou com um febrão. “Demos paracetamol, mas no dia a seguir a temperatura voltou a subir. Não desconfiámos de nada, já que tinha passado um mês de eu ter sido infetada e tudo o mais era normal”, explica Madalena. Dias depois, a situação piorou: Francisco tremia e batia os dentes com 40 graus de febre. Os pais levaram-no ao Hospital Dona Estefânia, a unidade com mais experiência nos casos infantis de covid-19 em Portugal. Por lá já passaram mais de 100 crianças com a doença.

Como Madalena já tinha sido infetada, a decisão do casal foi que a mãe acompanharia Francisco. Fizeram-lhe logo um teste de diagnóstico de covid-19, um raio-X ao tórax e análises ao sangue. Todos os exames deram negativo, apesar de algumas alterações nos parâmetros das análises. “Fizeram uma TAC e também não encontraram nada”, conta a mãe, que não se recorda da última vez que o filho havia ficado doente.

Enquanto aguardavam, Francisco sentiu-se mal, vomitou e começaram a surgir-lhe manchas vermelhas nas mãos e no antebraço. Eram os primeiros sinais visíveis da síndrome rara associada à covid-19, que tem intrigado médicos, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. No total, segundo o Centro Europeu de Prevenção de Doenças (ECDC), estão registados 230 casos em todo o mundo desta patologia, que já provocou mortes, parece começar a chegar a jovens adultos e apresenta sintomas semelhantes à doença de Kawasaki e à Síndrome do Choque Tóxico.

“PERCEBI QUE PODIA PERDÊ-LO”

“Nós sabíamos que a doença existia, embora ainda não tivesse sido identificada em Portugal. Duas ou três semanas antes de o Francisco aparecer, tínhamos começado a ouvir referências a esta síndrome entre os colegas de fora de Portugal”, explica Maria João Brito, responsável pela Unidade de Infecciologia do Hospital Dona Estefânia.

Os pais, contudo, estavam longe de imaginar a evolução que Francisco ainda teria. Mesmo com o resultado negativo para a covid-19, a criança e a mãe foram internados num quarto de pressão negativa. E Madalena foi avisada de que “quem entrava naquela ala, já não saía”, só quando o caso estivesse resolvido.

As manchas continuaram a espalhar-se pelo corpo, pernas, costas, até os olhos. Todo o corpo do rapaz foi sendo ‘picado’ pela estranha alteração cutânea. No dia seguinte, a situação agravou-se, com o surgimento de um desconforto a cada respiração. Os exames multiplicaram-se: eletrocardiograma, ecocardiograma, outro raio-X, mais análises e um novo teste à covid-19. No total foram cinco. Todos negativos.

“A partir dali foi o descalabro”, lembra Madalena. Francisco fez uma angioTAC, que permite estudar a circulação coronária e percebeu-se que o adolescente já tinha uma grave pneumonia bilateral. “Não há nada pior do que pais que não sabem o que o filho tem. Senti que podia perdê-lo. O corpo dele ficou frio, e fui à casa de banho chorar.” Francisco começou a entrar em hipotensão, o coração batia cada vez mais depressa e os alarmes dos monitores não paravam de apitar.

Madalena teve de sair. Francisco foi sedado e entubado para ser ventilado e foi-lhe colocado um cateter central ligado ao pescoço para fazer tratamentos que não se podem fazer numa veia normal. Depois de duas horas e meia de espera, às 1h48 da madrugada uma médica avisou a mãe que já tinham estabilizado o rapaz. Foi nesse momento que Madalena ouviu a frase que se colou à pele: “Cada hora é uma vitória.”

“Francisco apresentou uma resposta anómala do sistema imunitário à infeção pelo vírus, entrou em choque, o que levou a uma falência renal e insuficiência respiratória. As principais complicações foram uma miocardite e uma pneumonia grave, mas apresentava ainda gânglios abdominais aumentados e pancreatite”, explica Maria João Brito. Foram-lhe administrados dois tipos de antibióticos, corticoides, uma terapia imunorreguladora. E, mesmo antes de chegar o resultado do teste serológico — que acabaria por identificar a presença do novo coronavírus através dos anticorpos no organismo da criança —, os pais assinaram um consentimento informado, autorizando a utilização de hidroxicloroquina (ver caixa), fármaco para a artrite reumatoide que está a ser usado em casos críticos de covid.

Francisco reagiu à terapêutica e, depois de ter sido ventilado durante quatro dias, começou a melhorar. Ficou internado mais uma semana e a família está “empenhada em recuperar desse trambolhão”. Perdeu quase dez quilos, diariamente dá passeios no jardim para recuperar massa muscular e capacidade de movimentação. Ainda está medicado e é acompanhado por uma equipa da Estefânia. Tornou-se um caso de estudo, que está reportado no relatório do ECDC como a única situação até agora verificada em Portugal. Maria João Brito diz que ainda é cedo para falar em sequelas. “Para já, o que interessa é a recuperação.”

“O vírus passou por ele e é preciso reconhecer a extraordinária capacidade da equipa que o tratou. Se pudesse, abraçava todos aqueles médicos”, desabafa o pai, que só conta o que viveu para alertar que o risco é raro, mas existe e não pode ser esquecido. “Chicão”, como o rapaz ficou conhecido no hospital, sorri. Afinal, está cá para contar a sua história.

 

Fonte: Expresso