Poucos são os lugares em Portugal onde se encontre menos civismo do que no trânsito à porta de uma escola. Com raras e respeitáveis excepções, é assim um pouco por todo o país, minutos antes do toque de entrada ou saída. Cada condutor pensa apenas em si, ignora todos os outros, estaciona em segunda fila mesmo que tenha lugar para estacionar, interrompe a marcha na frente de uma longa coluna de pais ansiosos que aguardam a sua oportunidade para fazer exactamente o mesmo. É uma parada de egoísmos e de arrogâncias motorizadas que esmagam qualquer vislumbre de sensatez que ali tente resistir.
Quando se assiste a estas cenas, não é possível deixar de recordar que, na Suécia, os lugares de estacionamento situados perto da entrada de uma escola ficam sempre vazios para que aqueles que chegam tardiamente não percam tempo a procurar lugar. Ou seja, na Suécia, quem chega mais cedo estaciona mais longe porque tem tempo para isso; os melhores lugares são para os mais atrasados.
Por cá, quanto maior a cilindrada dos veículos, maior a desfaçatez. Vemos crianças forçadas a contornar automóveis parados em cima das passadeiras para que outras crianças saiam do carro em privilegiada segurança. Vemos adultos a abrir portas aos seus infantes, por mordomia pedocrática, depois de repenicados beijinhos e abraços. Despejado o mamífero, vemos olhares desdenhosos para os condutores que os precedem, também eles fumegando de impaciência.
Os menos arrogantes ainda tentam simular arrependimentos por desmazelos rodoviários que irão repetir nos dias seguintes, o ano inteiro. Vai um abismo crescente da escola à rua. O civismo ainda funciona?
O eremita ético
De nada adianta procurar explicar a este e àquele que a escola se esforça todos os dias por treinar e ensaiar civismo junto dos seus miúdos. E prevenção rodoviária, também, que hoje em dia à escola pede-se que ensine absolutamente tudo. De nada adianta insinuar que a ideia básica – e secundária, e superior – de uma escola é produzir gente educada e instruída. Gente que conheça as vantagens de pensar no Bem que devemos uns aos outros. Pessoas que praticam cá fora o que se aprende lá dentro. E que se aplica lá dentro o que se aprende cá fora.
As escolas são das poucas instituições que pretendem garantir que todos compreendem que a cidadania e a responsabilidade ética devem ser seguidas em todos os momentos, por cada um de nós, em todas as circunstâncias. Não é preciso nenhum diploma para perceber isto. Trata-se apenas de pensar que decidimos todos abdicar da nossa liberdade para beneficiar das inúmeras vantagens que existem em não sermos eremitas solitários.
A escola vive esta constante separação das águas. O que se diz lá dentro parece impraticável cá fora. De que adianta explicar a reciclagem, se depois ninguém recicla? De que adianta falar da roda dos alimentos se os restaurantes de fast food estão cheios a toda a hora?
Que andamos a fazer quando percebemos que a vida cá fora insiste em dar de si a imagem de um circo de vaidades onde os princípios e os valores éticos são mera cosmética e que, na verdade, tudo não passa de um artifício onde todos fingimos, postiços, que damos valor ao respeito que todos devemos uns aos outros?
A lavandaria da decência
Como pode pedir-se que uma escola estude cidadania quando os pais se recusam a exercê-la? Como se aprende civismo e ética se os governos de um país como o nosso caem sucessivamente por grosseiras suspeições de corrupção?
Como pode sobreviver uma escola esgotada pelas desventuras de assassinatos de velhinhas no Brasil, apartamentos emprestados em Paris, paquetes da Expo, compras de submarinos, sedes nos Países Baixos, vistos gold, hemorragias fiscais em offshore, artimanhas com golas antifogo, assaltos a paióis em Tancos, imbróglios com nomes de empresas EDPs, LENAs, BES, PTs, Emaudios, Bragaparques, SIRESPs, Freeports, Tecnoformas e por aí fora. Os portugueses coleccionam hoje nomes de operações policiais: LEX, Marquês, Montebranco, Babel, Gota d´Água, Remédio Santo, Apito Dourado, E-toupeira, Questor, para destacar apenas algumas das que envolvem crimes de corrupção. Nem todos percebem que cada escândalo destes humilha a escola e aniquila a sua serventia. Porque não há escola sem princípios, sem integridade e sem ética.
O enterro da escola
Cada português perdeu hoje o direito de acreditar seja em quem for, seja no que for. Pelo contrário, começa a sentir o dever patriótico de desconfiar de tudo e de todos e de considerar toda a gente culpada até que prove a sua inocência. Os valores de uma comunidade apenas sobrevivem num ambiente de diligência, respeitabilidade e integridade.
Como pode um cidadão impedir-se de pensar exclusivamente em si e nos seus? Quando pode um português dar-se ao luxo de crer em alguém que diz e faz precisamente aquilo que é necessário ser dito e feito? Como pode alguém dar-se à política quando dela se tem a noção de que se trata de uma forma vil de subir na vida e nada mais? Como pode um país sobreviver quando o pior que um jovem pode fazer é militar numa qualquer juventude partidária, entendida hoje como berçário de cretinos núbeis? É o estupro da política. O escárnio da ética. O engaveto da ideologia. O enxovalho da esperança e, acto contínuo, o enterro da escola. Regressámos a um Portugal amordaçado, onde a política serve apenas para adubar a mesquinhez pública, onde prosperam os moralistas e os hipócritas profissionais. O exemplo vem de baixo.
A canelada cívica
O lugar da escola neste cenário é o da candura. A simplicidade imprescindível de garantir a cada miúdo que se lutar na vida, com estudo, sonho e alguma sorte, chegará longe. Resta saber se os professores ainda acreditam nisso. Porque se os professores deixam de acreditar que o estudo e a escola funcionam, quem sofre com isso não são as crianças. Somos todos nós.
É crucial que se entenda que a falta de civismo é uma ferida aberta que revela a víscera moral de uma comunidade. Governos que caem e saem de cabeça arguida lançam um manto de indignidade sobre todos nós. O desleixo cívico cresce, a boçalidade ideológica vence, as caneladas éticas gangrenam tudo. As escolas vivem-no diariamente. Os miúdos percebem-no. Os portugueses praticam-no à porta das escolas. É o triunfo do cinismo. As consequências são imediatas. Do civismo ao cinismo vai um saltinho só. Não precisamos de esperar por futuro nenhum. Os arguidos somos nós.