Início Opinião Um ano para esquecer? – Eduardo Sá

Um ano para esquecer? – Eduardo Sá

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A ideia de que há anos “para esquecer” entende-se. Mas a memória insiste em guardar todos os acontecimentos que fogem ao habitual. Logo, os anos “para esquecer” arriscam-se a ser daqueles que passarão a ter com o esquecimento uma “relação difícil”. E isso pode não ser, assim, tão, mau.

Há um ano, a cada minuto que ia passando, 973 mil pessoas, em todo o mundo, “davam um salto” ao Facebook. E, por mais de 500 vezes, por dia, cada uma acedia ao écran do seu telemóvel.

Há um ano, vivíamos todos uma vida acelerada. Num mundo de sobrecomunicação. Numa hiperestimulação permanente. Sem grande espaço para descansarmos. Com compromissos a concorrem uns com os outros, duma forma frenética. Numa excitação permanente.

Há um ano atrás, os nossos filhos trabalhavam das 8 às 8, todos os dias. Ao fim de semana, tinham actividades extra-curriculares, explicações e programas sociais. E viviam cansados. Por vezes, exaustos. Sem lhes elegermos tempos livres. Nem tempo para o brincar. Ou para o convívio. Sem que o descanso fosse uma urgência ou um direito.

Há um ano atrás, as escolas estavam para viver as provas de aferição. E tudo parecia estar a funcionar com as pequenas mudanças de há muitos anos. Como se, no sistema de ensino, cada pequena mudança trouxesse consigo o desconforto de parecer existir para continuar “tudo” mais ou menos… na mesma.

Há um ano, as empresas e as instituições monitorizavam os horários de entrada dos seus colaboradores por controlo biométrico. Às vezes, sob assédio moral. E aqueles que cumprissem os horários de entrada e de saída do local de trabalho corriam o risco de ser considerados como se não “vestissem a camisola”. Como se quem trabalha não fosse de confiar.

Há um ano, já prevíamos as intempéries, com duas semanas de avanço (e já tínhamos alertas de várias cores, sinalizando os perigos), como se o futuro nunca nos apanhasse desprevenidos. E já planeávamos os nossos caminhos. E tínhamos o GPS a anunciar-nos, de acordo com a nossa vontade: “Chegou ao seu destino!”. Há um ano, a ciência e a técnica davam-nos, todos os dias, a ilusão duma omnipotência que não tínhamos. E os algoritmos faziam com que os motores de busca escolhessem por nós. Dando-nos a ideia duma inteligência artificial — qual Génio da Lâmpada — ao nosso serviço. Há um ano, talvez vivêssemos mais virados sobre nós próprios que de olhos postos nos outros. E os outros (sempre “os outros”) talvez fossem muito mais um “efeito colateral” — um “ruído” — adjacente à nossa existência, do que, propriamente, uma razão de ser para ela. Há um ano, vivíamos num mundo de redes sociais que procuravam, sobretudo, os fenómenos virais. E, de um dia para o outro, o viral invadiu-nos. E limitou as nossas vidas.

Estivemos 45 dias fechados em casa e passámos, até agora, por 4 períodos de estados de emergência. E isso levou-nos ao distanciamento e ao recolher obrigatório. O trabalho e a escola “refugiaram-se” em casa Os pais descobriram que são muitíssimo mais “multifunções” do que jamais imaginariam. E mais equilibrados do que supunham. E tudo isso fez com que tivessem passado a conhecer os filhos, como nunca tinha sucedido, até aí. Os filhos — quer pela forma como viveram o confinamento obrigatório, quer pelo modo como colaboraram com as regras impostas pelas escolas — deram provas, inequívocas, de sensatez e de equilíbrio que, doutra maneira, pareceriam improváveis. E os avós passaram a estar remetidos a uma reclusão profiláctica. Longe dos abraços dos filhos e dos netos. Longe das suas vidas e da sua autonomia. E longe dos cuidados indispensáveis a quem têm direito.

No último ano, de um dia para outro, descobrimos as vantagens do campo, das varandas, das moradias e dos terraços. Comprámos, como nunca, na internet. E as refeições entregues em casa passaram a fazer parte das nossas vidas. E pudemos ser assustados. E solidários. E perseverantes. E pudemos voltar a ter medo e a ter esperança. E pudemos estar tristes. E batalhámos. E batalhámos! E os “esgotamentos” em que vivíamos fizeram com que os nossos “drop outs” deixassem de ter a agenda e o protagonismo que lhes dávamos. E resistimos. Enquanto trabalhávamos, a partir de casa, mais horas, com menos condições, e “sem controle”. Apesar da intempérie. E de não sermos tão donos assim do nosso destino. E voltámos a ser pequenos; outra vez. E a contar uns para os outros.

Não sei se, depois disto, não virá de lá um arrufo de mais alguma omnipotência a tomar conta de nós. Ou uma euforia passageira. Mas estes 9 meses de humanidade ninguém no-los tira. Não é razoável que se agradeça a um mísero vírus por isso; claro. Mas, pudesse ele imaginar a importância que teve no modo como nos ajudou a regressar ao passado e, em muitos aspectos, a antecipar o futuro, e enchia-se de vaidade por aquilo de que nos tronou capazes de fazer. Voltámos a ser mais pessoas. (Se bem que pequenos) E que bem que isso nós fica! Outra vez.

Fonte: Observador