Em período de férias escolares, são muitos os alunos que levam trabalhos de casa para fazer. Nem todos os docentes concordam na mais-valia dos deveres, mas todos são unânimes ao pedir equilíbrio. Questionada pelo DN, Anabela Areias, professora do 1.º Ciclo do Ensino Básico na Escola Básica Mem Martins do Agrupamento de Escolas Ferreira de Castro afirma que a premissa de que os trabalhos de casa servem para “consolidar” conteúdos, não justifica a marcação de trabalhos de casa. “Nós adultos quando vamos de férias queremos levar algum trabalho connosco? Não. Nós queremos estar livres de horários, de responsabilidades do trabalho. Fazer o que nos apetecer. Descansar a mente para depois voltar com mais energia”, sublinha.
A docente, finalista da edição 2021, do concurso Global Teacher Prize recorda o seu próprio passado enquanto aluna, numa altura em que “sentia saudades da escola”. “Em criança, tinha quase 3 meses de férias de verão e sentia saudades da escola. Será que as crianças atualmente também têm saudades da escola depois das férias grandes? Creio que não. E uma das razões poderá ser a de não conseguirem desligar-se completamente da escola”, sustenta. Sobre a necessidade de consolidar conteúdos para não esquecerem a matéria dada, Anabela Areia, levanta muitas questões. “Será que o esquecimento tem a ver com o tempo? Ou será que estamos a sobrecarregar a memória das nossas crianças? E ainda bem que esquecem! Quando esquecem é sinal que tenho de me preparar melhor para que o ensino aprendizagem seja mais vivo, atraente e com significado. Não quero com isto dizer que sou contra a memorização. O importante é que saibamos selecionar o que queremos que as nossas crianças memorizem.”, justifica.
Contudo, a professora não é contra a marcação de trabalhos de casa, mas sim na tipologia dos mesmos. Sugere, por isso, ” atividades para fazer em família, como uma caminhada pela natureza; visitar um museu; fazer uma pintura; fazer um bolo, entre outras”. “E assim, sim, sou a favor destas sugestões que não são obrigações”, conclui.
Virgínia Alves, professora 1º ciclo, no Colégio Efanor, Matosinhos, também defende tarefas diferenciadas para as férias grandes, atividades que sirvam de sugestão e não tenham caráter obrigatório. “As atividades de férias que recomendo, normalmente, são leituras e, se os adultos tiverem como hábito ler, ainda melhor. Também aconselho jogos em família ou puzzles”, refere. A docente defende a necessidade de haver “uma quebra”, pois “as crianças devem brincar e estar com a família porque durante o ano passam muito tempo nas escolas”.
Virgínia Alves alerta, no entanto, que “há crianças que precisam de trabalhos orientados”. Nesses acasos, explica, recomenda livros de exercícios, com “os conteúdos ditos formais”. “Mas só recomendo que o façam depois de umas boas semanas em família e já mais próximo do recomeço das aulas. É sempre como sugestão e não é obrigatório. Há crianças que precisam de voltar às rotinas mais cedo e outras que não”, afirma. Para Virgínia Alves, “as crianças que trabalharam bem o ano todo e que foram bem sucedidas, basta que façam leituras, joguem jogos de palavras como o Scrabble” ou outras atividades lúdicas onde conseguem aprender, estando a brincar. “Nas férias, devemos investir, sobretudo, na parte emocional, nas emoções, em estar com a família, com os avós”, conclui.
Alberto Veronesi, consultor pedagógico e professor de 1º ciclo, sublinha não haver consenso na questão dos trabalhos de casa em período de férias escolares, mas é a favor e considera-os como “parte do processo de aprendizagem”, desde que se restrinjam “a atividades que acrescentem valor”. “Se cumprirem com esse requisito e, quando usados de forma equilibrada considerando as necessidades individuais dos estudantes, podem ser uma ferramenta valiosa no processo de aprendizagem. Eu, por exemplo, aos meus alunos recomendei como trabalho de férias a leitura de um livro da sua escolha. (transitaram para o 3.º ano), porque nesta faixa etária é extremamente importante o treino da leitura”, diz.
“Crianças fazem vida de adultos”
A marcação de deveres não é, segundo Alberto Veronesi, a questão mais preocupante no universo do 1º ciclo. A maior preocupação do docente está “no tempo excessivo que as crianças passam em meio escolar, seja a ter aulas, seja em atividades de enriquecimento curricular, componentes de apoio à família”. “Muitas chegam às 8h e saem às 19h30. Chegam a casa, jantam, deitam-se e no dia seguinte repetem. Fazem vida de adultos”, lamenta. A explicação, diz, passa pela gestão familiar, com “pais que têm de trabalhar cada vez mais horas e alguns até com dois empregos”. As crianças acabam por não ter “tempo morto”. “Onde fica o tempo para não fazerem nada? Fugimos e queremos que as crianças fujam do tédio, mas o tédio pode levar a procurar maneiras de se entreter e de se desafiar, o que pode resultar em pensamentos e ideias criativas. Quando não estamos ocupados com atividades específicas ou distrações constantes, a nossa mente pode pensar livremente, permitindo que façamos conexões inesperadas entre diferentes conceitos e ideias. Eu lembro-me de, na minha infância, ter inventado brincadeiras por ter conhecido o tédio. Hoje passa-se um telemóvel para a mão e é a brincadeira”, salienta.
Alberto Veronesi lamenta a “excessiva carga horária no 1º ciclo” e defende um horário letivo centrado na parte da manhã, com atividades de enriquecimento curricular da parte da tarde, “mas que enriquecem mesmo e não passatempos como muitas vezes assistimos hoje em dia”. “Estamos no caminho invertido. Estamos a maltratar a infância! A ideia da escola a tempo inteiro é o assumir de um estado social falido. Percebo a intenção da escola a tempo inteiro, mas discordo da sua implementação tal como está. Permanecer no espaço escolar só se isso acrescentar valor ao aluno. Neste momento funciona como depósito de suporte social e isso pagaremos caro no futuro”, afiança.
Anabela Areias também lamenta a “excessiva carga horária”, mas compensa-a com abordagens pedagógicas diferenciadas, tornando as aulas “mais leves”. “Devemos repensar como são geridas as “nossas” aulas. Por exemplo, na minha prática de quase 20 anos em escolas públicas, geralmente com 24 alunos, uma aula principal de aproximadamente 1h30 é harmonizada em três partes ligadas ao: QUERER – SENTIR – PENSAR de forma equilibrada, em vez do Pensar ser o único protagonista a reinar na aula. Começo sempre com uma parte rítmica, após o acolhimento individual de cada criança (à entrada da sala) e o acolhimento de todas as crianças dentro da sala de aula. Esta parte rítmica, à qual chamo Despertar os Sentidos, trabalhamos poemas, trava-línguas, lengalengas, canções, acompanhados com movimentos adequados e associados ao tema dessa aula, às estações do ano e a alguma festividade”, exemplifica.
Virgínia Alves aplica estratégias semelhantes, de forma a “encarar a aprendizagem como uma brincadeira”. “As crianças têm muito mais tempo de trabalho do que de brincadeira e, por isso, é importante, durante as aulas, criar momentos em que os alunos sejam autores da sua aprendizagem, sejam eles a construir o próprio saber, com atividades que permitam movimento dentro da sala de aula”, explica. Quanto à carga horária – uma das mais pesadas da Europa – a professora acredita que, “com um currículo mais variado e disciplinas mais práticas, o tempo que se passa na escola fica menos pesado e a carga horária acaba por ser ajustada”.
Diretores e professores querem revisão do calendário escolar do 1º ciclo
Para as crianças do 1º ciclo, as aulas voltam a terminar no próximo ano letivo mais tarde em comparação com os restantes ciclos e à semelhança dos anos anteriores. O ano terminará a 4 junho de 2024 para os 9.º, 11.º e 12.º anos, a 14 para 5.º, 6.º, 7.º, 8.º e 10.º anos e a 28 junho para o 1º ciclo.
Filinto Lima, presidente da direção da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP) considera “excessivo e desaconselhável o excesso de tempo e dias letivos no 1.º Ciclo”. O responsável afirma que a eficácia do prolongamento do ano para o 1º ciclo não é proporcional à enorme carga horária, tendo em conta a idade dos alunos”. “A quantidade de tempo letivo não equivale à desejada qualidade do processo ensino-aprendizagem. As últimas duas semanas de aulas (2.ª quinzena de junho) no 1.º Ciclo, uma das quais em pleno verão, são um autêntico suplício para os alunos e sacrifício para os professores que, na ânsia de captar a atenção das crianças no desenvolvimento de atividades pedagógicos, lidam com discentes cujos irmãos já estão de férias, estando também a pensar nas mesmas” afirma. Filinto Lima pede “uma reflexão séria por parte da tutela, antecedida de um debate participado por todos” e uma “correção do calendário escolar equiparando-o ao do 2.º e 3.º ciclos”. “O processo ensino-aprendizagem, os alunos e professores ficariam a ganhar”, sublinha.
Os docentes partilham a mesma visão e não encontram vantagens no término mais tardio das aulas para o 1º ciclo. “É exequível cumprir o programa sem ter de terminar mais tarde, mas isso implica outras guerras, pois dificulta a gestão familiar. E é ainda de mais difícil compreensão para as crianças com irmãos noutros ciclos, que terminam mais cedo o ano letivo”, refere Virgínia Alves.
Segundo Alberto Veronesi, “o ano letivo deveria terminar ali a rondar o feriado de 10 de junho para todos os ciclos”. “Deveríamos caminhar para os números do resto da Europa quanto ao número de horas passadas na escola”, conclui.