Tempo de Unidade, também. O discurso do Primeiro-Ministro na sexta-feira passada e a posição pública dos partidos políticos foram um raio de esperança nestes tempos difíceis que se aproximam. As lideranças políticas afirmam-se nas dificuldades, não nos momentos fáceis e de euforia. Esteve bem o Chefe do Governo, acima dum consenso inexplicável dum órgão consultivo, que se pretende apolítico e técnico e não temendo as consequências sociais, políticas e económicas decorrentes das suas posições.
Subscrevo o apelo do Director da minha Faculdade de Medicina ao Primeiro-Ministro: este é o tempo de ir mais longe, não retroceder no caminho iniciado, ter coragem para as decisões mais difíceis e impopulares. Essa é a marca dos políticos que ficam na História. Churchill tinha razão: a coragem é a virtude política essencial, e ele mostrou-a ao tomar a decisão difícil de enfrentar a guerra e recusar um consenso espúrio que muitos no seu partido propunham, como a demonstrou no apoio aos seus cientistas – Churchill’s Scientists foi uma exposição sóbria mas memorável – vencendo burocracia e amizades pessoais e cumplicidades partidárias.
Estiveram bem os órgãos representativos e institucionais da Medicina. Do Conselho das Escolas Médicas Portuguesas à Ordem dos Médicos. Situaram-se acima das querelas menores, não procuraram vantagens efémeras e defenderam o essencial. Partilho com eles o orgulho e a responsabilidade de ser Médico.
E se ninguém duvida da necessidade de respostas colectivas, estruturadas e coerentes, preparação dos serviços, mobilização de todos sem excepção, é preciso não esquecer que Conhecimento e Informação são as nossas melhores armas nesta guerra.
Por isso, tempo de quarentena tem que ser, também, um tempo de reflexão. Racionalidade e independência são as nossas armas para agirmos com consequência.
Porquê a hesitação inicial? Há um debate na comunidade científica na forma como lidar com algumas epidemias, cuja letalidade sendo globalmente baixa, comportam risco elevado para subgrupos populacionais. Apoiados em modelos estatísticos defendem que, na ausência de tratamento específico ou de vacinas, o fundamental para minimizar uma epidemia será promover a chamada herd immunity. Este é um conceito que pode traduzir-se por imunidade geral da população, do grupo, e não da manada como o termo herd pode sugerir numa tradução mais literal. E a percentagem da população necessariamente atingida para que essa imunidade global resulte é cerca de 70%.
Tem um custo. Primeiro, uma incidência de mortalidade nos grupos populacionais de maior risco e depois enorme sobrecarga sobre os serviços de Saúde. Num texto publicado pelo World Economic Forum em 14/3/2020 e disponível na net Jeremy Rossman, Professor de Epidemiologia e Virologia em Kent, estima para o Reino-Unido que o custo dessa estratégia seria de 1 milhão de mortes e 8 milhões com infecções respiratórias graves com necessidade de tratamento em unidades de cuidados intensivos e porventura ventilação assistida.
Faça-se a extrapolação para a nossa realidade: 1120 000 doentes graves (16% do total de 70% da população potencialmente infectada) um número significativo – 10% dos 16% precisando de tratamento em cuidados intensivos e mortalidade de global de 3 a 4%– bastante mais elevada a partir dos 70 anos. Porventura, teríamos que contar com cerca de 3 000 a 4 000 mortos, a maior parte no subgrupo com mais de 70 anos.
Este seria o preço potencial se seguíssemos esta estratégia de herd immunity que parecia claramente subjacente no texto público do documento do CNSP.
Esta poderá ser a filosofia subjacente ao que tem sido o planeamento estratégico no Reino-Unido, onde até agora, tarde de domingo, parecem manter-se em funcionamento actividades públicas, como escolas, universidades e outras.
O Primeiro-Ministro cortou cerce este cenário com a sua declaração de sexta-feira passada.
O problema essencial é, pois, reduzir a exposição da população ao vírus e o Governo percebeu e agiu. Mas é preciso ir mais longe como o Director da Faculdade de Medicina escreveu e acabei de ouvir, o Chefe de Estado a anunciar reunião do Conselho de Estado para declarar Emergência Nacional. Não é um exagero é uma necessidade, e quanto mais depressa melhor!
A realidade sobrepõe-se aos modelos matemáticos extrapolados de outras epidemias que nem sempre reflectem a variação e imprevisibilidade dos agentes biológicos. No Reino-Unido, a Premier League cancelou os jogos de futebol – parece que já não serão à porta fechada – a maratona de Londres idem e muitos outros eventos de grande impacto público foram adiados ou mesmo cancelados.
Ontem, um grupo relevante de cientistas solicitou ao Primeiro-Ministro inglês uma actuação consequente com a gravidade da pandemia. Mas, tudo pode ainda acontecer; ainda ontem na BBC aparecia reportagem duma iniciativa, que me pareceu na rural England, quer pela paisagem, quer pelo sotaque, duma corrida inter-geracional de corta-mato. Uma lição de coragem e determinação da velha Albion, perante os temerosos continentais. Valeu o jornalista que se perguntava até quando!
A outra estratégia assenta no conhecimento tão real quanto possível dos casos contaminados e das cadeias de transmissão. Mas numa epidemia em que a contagiosidade é elevada, não é suficiente detectar só os casos sintomáticos graves. É fundamental ter um panorama mais amplo, para adequar as medidas de contenção e restrição. Procura ganhar tempo esperando o aparecimento de vacina ou tratamento específico e reduzir a mortalidade e a sobrecarga sobre os serviços hospitalares de rectaguarda, em troco duma imunidade global da população.
Esta foi a posição do Prof. Larry Brilliant em entrevista ontem na BBC. Ele foi líder no team que erradicou a varíola, e defendeu a necessidade de conhecer a verdadeira dimensão da epidemia para lidar melhor com o impacto nos serviços de Saúde e na redução das complicações mais graves ou fatais. Deu como exemplo o número de testes 3 500 / milhão de habitantes na Coreia do Sul versus 5 / milhão de habitantes nos Estados Unidos, que mantiveram uma orgulhosa e quase criminosa apatia na luta contra o vírus estrangeiro, tentando disso obter vantagens políticas.
A ignorância pode servir muitos propósitos, mas não certamente o interesse colectivo.
Na Alemanha, foram disponibilizados drive – in tests em locais de afluência pública, pagos pelo Estado, e cujos resultados eram comunicados logo que prontos à organização centralizada de combate à epidemia e ao cidadão. Na Coreia do Sul, como julgo que em Singapura, os movimentos e contactos dos portadores foram monitorizados via GPS do telefone portátil. Um excesso certamente, dificilmente tolerável nas nossas sociedades democráticas ocidentais, mas … justificável numa situação de pandemia? Mas é interessante notar que na Coreia do Sul, em Singapura, Macau e Hong-Kong e Taiwan esta política de isolamento, diagnóstico pró-activo e vigilância dos portadores da doença e dos seus contactos, foi bem sucedida com redução significativa do números de novos casos e muito baixa mortalidade.
E nós? Estaremos preparados? Dispomos dos kits de diagnóstico em número suficiente para as necessidades? Temos o material de protecção para todos os profissionais de Saúde? Camas de cuidados Intensivos apetrechadas e em número suficiente? Há uma cadeia de comando operacional que chegue a todo o lado e saiba dizer o que e como agir?
Impressiona-me a organização da linha SNS24. Na era da inteligência artificial, baseámos um contacto aberto que pode ser padronizado e automatizado no diálogo com profissionais. Era óbvio que quanto mais a população fosse induzida à sua utilização, maiores as dificuldades. Porque não um sistema inteligente com um algoritmo específico capaz de interagir com os humanos e identificar os sinais mais graves, porque tudo isso é padronizável? Porque não envolver neste combate os nossos experts em IA, que existem e actuam para além de Web Summits?
Vamos viver uma situação difícil. Os relatos que chegam de Itália – mais fáceis pelo idioma, do que o poderá ser a experiência no Oriente – são uma lição e dolorosa.
Como disseram os responsáveis, o crescimento será exponencial nos próximos dias, a realidade será, na nossa dimensão, comparável à Itália e Espanha e uma mobilização e administração judiciosa dos recursos é indispensável. Impõem-se todas as medidas de contenção e defesa da população, mesmo as que tenham maior impacto social e económico. E precisa-se de civismo, de todos nós!
Numa campanha, civil ou militar, para além das lideranças e dos executantes, é fundamental a coerência e a articulação da cadeia de comando. E a mobilização de todos, seja qual for a área, pública ou privada, civil ou militar, onde se situem. Em tempos de guerra não se limpam armas, nem se discutem superficialidades.
As declarações dos responsáveis focaram quase exclusivamente o SNS, como se este combate fosse só uma batalha do serviço público, ou dela tivéssemos que retirar dividendos duma opção política em detrimento de outras. Foi um erro, não ter logo e publicamente, convocado todos, do sector privado ao social, à organização militar, a todos, para este combate global.
É indispensável que os nossos responsáveis na Saúde ultrapassem as fronteiras do SNS e se assumam na abrangência global da sua responsabilidade nacional na Saúde. Esta atitude não serviu nenhum propósito, empobreceu-nos a todos, impediu diálogo construtivo e extremou posições. Só agora haverá uma reunião com a Associação que representa os prestadores privados. Porque não desde o início? O SNS português, como qualquer outro, não pode vencer sozinho esta batalha, cujo impacto é enorme e se prolongará no tempo, nomeadamente para todos aqueles que necessariamente necessitam de tratamento e vêm essa oportunidade adiada.
É necessário a articulação coerente de todos, para que, a resolução das carências não venha a ser oportunidade de negócio, mas convergência de competências e capacidades para a sua resolução.
De facto, precisamos de todos, e a responsabilidade última é do Estado, como expressão da sociedade organizada a quem confiámos o privilégio e o dever de dirigir e comandar nestas horas de desafio individual e colectivo.
Finalmente, um raio de luz! Ontem uma manifestação simbólica, mas significativa, de apoio aos profissionais de Saúde. Foi muito importante, porque o desafio é imenso, os próprios médicos, enfermeiros e outros têm uma sobrecarga enorme, podem adoecer também, para além da exaustão e então, o problema agravar-se-á. Por tudo isto, todos, em conjunto, seja em que sector for, não seremos de mais para vencermos este combate!
Fonte: Observador