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Sou negra desde a escola primária – Cláudia Lucas Chéu

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Não há dúvida que a Escola, nomeadamente os professores e toda a comunidade escolar, devem ter um papel importante numa situação como a relatada pela autora. Deve mostrar com atos e não apenas nas aulas de cidadania e afins, que somos todos iguais, todos Seres Humanos, mas diferentes na cor de pele, nos costumes, na cultura, na língua sem que isso possa alguma vez prejudicar nos direitos que devem ser “adquiridos” à nascença!


Sou negra. Os meus pais e os meus avós são negros, mas tenho tios e primos com outras cores de pele e de várias nacionalidades.

Em miúda gostava de andar na escola, era boa aluna. Tinha uma amiguinha branca sentada ao meu lado na carteira, que gostava igualmente da escola e que também era boa aluna. Um dia, a professora, que era branca como a coleguinha, após corrigir um teste, vem direita a mim e finge que pergunta: “tu andas a copiar.” Aquilo não era uma pergunta, era uma acusação. Eu e a minha coleguinha branca tínhamos acertado quase todas as perguntas de Português, mas, sem qualquer hesitação, a acusação da cópia caiu sobre mim, a menina negra. Tentei defender-me, estava inocente, não tinha copiado.

Eu gostava da escola, eu era boa aluna. Não percebia como é que a minha professora, que me conhecia e ensinava coisas que eu ouvia com entusiasmo há mais de dois anos, podia estar a acusar-me de uma coisa daquelas. Tentei defender-me da acusação da professora como consegui, mas com sete anos a argumentação por palavras é fraca e, nem dez frases mal articuladas depois, desatei num pranto. Estava inconsolável, não entendia tamanha injustiça. Fui mudada de carteira, para a última fila da sala. Pôs-me sentada ao lado do Delmar, o outro negro da sala. Ao contrário de mim, o Delmar nunca foi bom aluno nem gostava da escola, tal como outros meninos brancos que estavam sentados umas filas mais adiante.

Quando continuei a tirar boas notas nos testes, mesmo estando longe do quadro e vendo mal, mesmo estando sentada ao lado do Delmar que não me deixava ouvir a professora em condições com os seus beliscões e interrupções constantes, a professora nunca reconheceu o seu erro. Nunca me pediu desculpa. E eu sei que ela sabe que cometeu um erro, mas nunca mo disse. No recreio, fui várias vezes excluída das brincadeiras por ser negra: “és preta e feia, não quero brincar contigo!” Não entendia, a sério. Não percebia por que raio não me podiam tratar de igual forma.

Não tinha culpa. Mas sentia culpa, de alguma forma, sem saber bem porquê. Fui crescendo com vários episódios destes, mais ou menos explícitos, mas igualmente violentos. Já adulta, sorrio educadamente quando me dizem que Portugal não é um país racista. Não quero mais chatices. Contudo, nunca ouvi um negro ou uma negra dizer uma coisa destas. É curioso que sejam os brancos e as brancas a dizê-lo. Ser negra em Portugal, e praticamente em todos os pontos do mundo, é crescer sem modelos de referência. Há poucos casos de sucesso para — e agora sim, faz sentido esta palavra — podermos copiar.

Olhamos em frente e o horizonte parece mais baixo. É como se o sol nascesse e se pusesse uns metros abaixo do normal, debaixo da linha do mar, submerso. A probabilidade de atingirmos um grande objectivo parece menor, e tudo isto porque somos negros e negras. Tudo isto porque nos querem fazer crer desde a escola primária que somos batoteiros e que o sucesso não é para nós.

Fonte: Público