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“Ser professor é educar e ensinar quem não sabe” – Raquel Varela

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Recentemente um anestesista escreveu um belo texto aqui na internet onde referia como muitos dos seus colegas, já antes, mas sobretudo depois do COVID-19, passaram a achar que o doente era uma ameaça. Esse sintoma é generalizado, não sabemos bem a percentagem, mas é altíssimo. É um dos sintomas do chamado burnout e está intimamente ligado à qualidade do trabalho. Nos professores pode ser visto pela quantidade de professores que se queixam dos alunos, e não conseguem sozinhos resolver a questão com estes, bem como na quantidade de pequenos problemas normais em crianças que se agigantam nas salas de aula, e acabam em rebuscados processos com directores, pais e psicólogos em que o único ser com saúde mental intacta é a criança que fez asneiras.

Na verdade os médicos vêem os pacientes assustados como uns “chatos” e os professores os alunos como “insuportáveis”. Gostam, ou pensam que gostam, de doentes que são saudáveis e de alunos que não precisam de ser ensinados. É a inversão do sentido do trabalho de ambos.

Isto não se dá por falta de bom senso ou talento para a profissão, como tantos pensam. É um sintoma claro de desrealização e despersonalização – o trabalho não lhes dá prazer, é fonte de sofrimento, o sentido do trabalho, educar, cuidar, passa a ser como que um alvo a abater, porque é visto como fonte de afectos negativos. Daí que quando há estes sentimentos seja preciso conhecer o trabalho e como ele se organiza, sob pena de cada um destes médicos e professores se sentir culpado pelo seus sentimentos negativos, o que só agrava os mesmos.

Lembro-me de uma educadora dos nossos filhos, a Isabel, quando um deles fazia birras, naquela fase de birras homéricas de se lançarem pelo chão dos supermercados a fingir que estão a ser espancados pelo Golias e nós já estamos a dez metros a fingir que não os vemos, pelos 2 anos, 2 anos e meio, eu lhe dizer que estava exausta e ela respondia-me com um sorriso cheio tranquila, na maior, que eu deixasse o assunto com ela porque ela adorava ensinar a controlar birras e ele era um desafio para ela. Era uma educadora, feliz, com o sentido do seu trabalho. Para ela as crianças são desafios, individuais, e não umas coisas chatas padronizadas alvo de planeamento, jamais realizado, num Excel.

As crianças que são muito educadas não precisam muito de professores, grande parte delas a partir de certa altura serão em parte auto didactas, melhores que muitos de nós professores. Ser professor é educar e ensinar quem não sabe, é esse o nosso desafio, ser investigador é perceber o que não se conhece. Ser médico é atender pessoas doentes, assustadas na sua maioria, inseguras e talvez chatas. Porque vão ao médico porque estão doentes e essa é uma condição normal. Ser médico é ter prazer em cuidar quem está frágil. O sentimento generalizado contrário que se criou – de que alunos e doentes são uma ameaça -, é em grande medida uma naturalização de um adoecimento mental, que é resultado da perda da qualidade e do sentido do trabalho nas duas áreas mais nobres, a saúde e a educação.

 

Fonte: Raquel Varela