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‘Ser professor deve ser o trabalho mais importante do século 21’

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Alex Beard era professor de uma escola no sul de Londres até que começou a se sentir estagnado na profissão e decidiu sair em busca de ideias alternativas.

Em uma viagem que incluiu mais de 20 países, Beard visitou escolas que desenvolvem ferramentas e métodos inovadores de ensino para enfrentar os desafios do século 21.

A jornada deu origem ao livro Natural Born Learners, em que ele não apenas reúne os exemplos mais relevantes, como também reflete sobre quais devem ser as principais questões que a educação vai enfrentar nas próximas décadas.

“A criatividade, a capacidade de resolver problemas e a importância dos professores são os grandes desafios das escolas. E tudo isso em meio à grande incógnita de como lidar com novas tecnologias e inteligência artificial”, afirmou.

Confira abaixo a entrevista que Beard concedeu à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, durante o Hay Festival, em Cartagena, na Colômbia.

BBC News Mundo – Quais são os piores erros que estão sendo cometidos na educação atualmente?

Alex Beard – É uma boa pergunta, que devemos nos fazer com urgência. Olha, eu comecei como professor em uma escola no sul de Londres, na Kent Road — que, para você ter uma ideia, é a propriedade mais barata no jogo Monopoly (Banco Imobiliário) — e me toquei que estava aplicando os métodos que Sócrates usava na ágora, há cerca de 2 mil anos, para ensinar crianças que tinham telefones celulares e viviam no futuro.

Acho que esse é o maior erro que estamos cometendo atualmente: as escolas permaneceram no passado e, com esses métodos ultrapassados, passamos 12 anos nas salas de aula, por isso é muito difícil mudar nossos conceitos sobre como a escola deve ser.

O segundo desafio que a educação enfrenta hoje é que não se sabe claramente em que focar, levando em consideração o futuro. Quando me vejo de novo na sala de aula, me vejo como um professor que ensina crianças a passar em uma prova.

Para que tirem uma nota aceitável, que é o que elas precisam, na prática, para passar de ano na escola.

BBC News Mundo – E isso não tem nada a ver com a formação de profissionais do futuro…

Beard – Exatamente, estamos treinando (esses alunos) para empregos e profissões que os robôs poderão realizar no futuro. Está claro para mim que não estou preparando (esses alunos) para o que vem por aí. E o erro que estamos cometendo é que colocamos muita culpa nos professores.

Acredito que devemos transformar o professor em uma das pessoas mais importantes da sociedade. Porque, no fim das contas, são eles que vão moldar nossa criatividade, nossa coesão social, que vão estabelecer os alicerces que levam a criar uma economia forte e sustentável.

Devemos nos esforçar para dar a eles autonomia e fortalecer seu profissionalismo, em vez de culpá-los porque as gerações mais jovens não estão à altura do que se espera.

BBC News Mundo – Nesse sentido, quais habilidades os professores devem ensinar na sala de aula para preparar os alunos para o futuro?

Beard – Acho que as crianças exigem três coisas. A primeira é aprender a pensar, mas de maneira condizente com os desafios do futuro. Elas devem pensar de forma crítica sobre o mundo, sobre o papel que desejam exercer a partir de um conhecimento profundo de si mesmas.

A segunda é aprender a agir, mas sobretudo, a como ser pessoas criativas. Agora estamos enfrentando desafios imensos na área ambiental, o aumento da desigualdade, um cenário em que muitos trabalhos serão realizados por máquinas… Portanto, vamos precisar que as crianças desenvolvam a fundo sua criatividade.

E isso significa que as crianças não devem apenas aprender a ser criativas, mas também a trabalhar com a ajuda de novas tecnologias, em conjunto com outras pessoas.

E a terceira é aplicar essa criatividade na resolução dos problemas que o mundo moderno apresenta. Para cuidar de si mesmos e das pessoas ao seu redor.

À medida que a sociedade se torna cada vez mais polarizada, os estudantes precisam desenvolver inteligência emocional para serem capazes de se conectar e ter empatia com outras pessoas, sejam da sua comunidade ou a nível global.

Mas, acima de tudo, aprender a entender seu próprio desenvolvimento emocional, para ser capaz de gerenciar seu bem-estar em um mundo em que, a cada dia, é mais difícil viver.

BBC News Mundo – Há um tema presente em seu livro: o papel da educação em ajudar a buscar ‘o sentido das coisas que estamos fazendo’.

Beard – Uma das coisas que estão transformando a maneira como entendemos a educação são as pesquisas sobre como nosso cérebro funciona, no campo da psicologia, do desenvolvimento inicial e até da neurociência.

E uma das coisas que os cientistas cognitivos descobriram é que há uma hierarquia em nossas experiências, cujos resultados nos levam a aprender. Se insistirmos em repetir e memorizar, você vai reter uma certa quantidade de conhecimento e vai aprender até certo ponto.

Mas se as coisas que você está aprendendo causam uma reação emocional — ou seja, fazem você se sentir entusiasmado, triste, confuso e assim por diante —, você pode reter mais conhecimento do que por meio da ‘decoreba’.

O mais importante é que tanto os pesquisadores quanto psicólogos chegaram à mesma conclusão: quando o aprendizado faz sentido para os alunos, ele realmente acontece.

BBC News Mundo – E o que significa o aprendizado fazer sentido?

Beard – Pode ser que um ensinamento tenha sentido porque há uma profissão específica que você quer seguir, e você espera que o aprendizado te ajude a conseguir esse trabalho e a executá-lo.

Mas essa é uma visão muito estreita da aprendizagem. Uma coisa pode fazer muito sentido para você porque é algo que você adora fazer. É importante para você como pessoa. Talvez você goste de matemática, de aprender novos idiomas, de música.

E, quando você começa a fazer essas coisas que ama, elas fazem sentido para você, porque têm a ver com sua identidade e sua maneira de se expressar.

As pessoas podem, inclusive, encontrar sua própria expressão ao criar códigos. Por exemplo, quando essa ideia se torna uma busca criativa ou você consegue encontrar significado no que faz, ao ver que está ajudando a resolver um problema sobre questões que são importantes para você no mundo.

Portanto, pode ser que você tenha interesse nas mudanças climáticas, se importe com a crescente desigualdade na sociedade, e se puder aplicar o aprendizado nas salas de aula para tentar resolver problemas relacionados a esses temas, então você vai encontrar significado no aprendizado e na aplicação desse aprendizado.

BBC News Mundo – O livro fala sobre a conexão entre aprendizado, tecnologia e inteligência artificial. É possível que a profissão de professor seja considerada obsoleta no futuro?

Beard – Bom… uma das razões pelas quais fiz essa viagem é que, quando trabalhava como professor em Londres, sentia que estava estagnado.

Eu via como as novas tecnologias, as redes sociais e o surgimento do big data (análise de grandes volumes de dados oriundos do uso de internet) estavam dominando tudo ao nosso redor e, de uma hora para outra, meu principal interesse era saber como essas novas tecnologias, incluindo a inteligência artificial, eram aplicadas na área de ensino. Se essas novas tecnologias podem realmente transformar a maneira como aprendemos.

Portanto, se a premissa era de que os robôs roubariam nosso trabalho, meu primeiro destino foi o Vale do Silício. Eu pensava que, após a estrondosa derrota de Gary Kasparov (ex-campeão mundial de xadrez) para o (supercomputador) Deep Blue em 1997, a inteligência artificial acabaria com tudo.

Mas minha visita ao Vale do Silício me ensinou outra coisa. Lá, eu vi pela primeira vez um professor robô. E não era um androide na frente de uma sala de aula: era, na verdade, um software de inteligência artificial dentro de um ambiente de aprendizado na internet.

BBC News Mundo – Como isso funcionava?

Beard – Eles tinham um laboratório de ensino onde havia um professor e cerca de dez crianças de cinco anos, cada uma na frente de um computador, com fones de ouvido. Todas as crianças estavam caladas, concentradas no computador, onde havia programas desenvolvidos para ajudá-las no aprendizado de idiomas ou na solução de problemas matemáticos.

O interessante era que, ao mesmo tempo em que o programa ajudava os alunos, também “aprendia” com os dados que obtinha em cada sessão quais eram os pontos fracos e fortes daquelas crianças, e adaptava automaticamente essa experiência para a lição seguinte.

Assim, no final, oferecia um programa de aprendizagem quase personalizado, enquanto esses dados eram repassados ​​aos professores, que, por sua vez, contavam com mais informações sobre cada aluno.

Este é um exemplo do que acontece: a inteligência artificial não superou os professores, mas se tornou uma ferramenta útil, um complemento muito necessário.

Outro exemplo: em 2013, um estudo da Oxford Martin School revelou que 700 profissões poderiam ser substituídas por robôs no futuro, mas nenhum dos empregos relacionados ao ensino — ou seja, professor de escola primária, pré-escola, ensino médio e até mesmo universitários — estavam com os dias contados. E é verdade. Isso acontece porque ensinar é definitivamente um processo humano.

BBC News Mundo – E não há riscos na convivência com os dados e a inteligência artificial?

Beard – Embora a inteligência artificial ou robôs existam, a educação depende da interação humana. Nós aprendemos naturalmente, mas nascemos para aprender em sociedade. No futuro, veremos muitos avanços tecnológicos, mas eles serão incorporados e usados ​​pelos professores.

O grande risco é que essa inteligência artificial possa ser melhor que os piores professores em algumas regiões do mundo. E o risco existe porque a inteligência artificial é barata. E talvez não seja melhor que a educação que um professor pode oferecer, mas pelo menos será mais barata. E esse é um grande perigo.

Mas essa é a minha versão pessimista do futuro. E acredito que podemos evitá-la se investirmos mais nos professores, em sua formação, o que vai resultar em professores mais especializados e muito mais capazes de lidar adequadamente com as ferramentas tecnológicas.

BBC News Mundo – Você disse várias vezes que os professores são bastante relutantes em aceitar essas novas formas de ensino. Por que isso acontece e como pode ser resolvido?

Beard – Acredito, em primeiro lugar, que ensinar será o trabalho mais importante do século 21.

Estamos vivendo uma era em que os recursos da Terra estão acabando, estamos ficando sem nada.

E a única coisa que é ilimitada, o único recurso ilimitado que temos, é a inteligência humana, a engenhosidade humana, nossa capacidade de resolver problemas. Os professores são aqueles que cultivam esse potencial humano.

Assim, argumento que ensinar será o trabalho mais importante do nosso século. Não tenho dúvidas, mas no momento não estamos preparando os professores para que sejam bem-sucedidos nesse trabalho.

Podemos pegar como exemplo o caso da Finlândia: o curso mais difícil de passar é o de professor de escola primária. E se você entra, o curso em si é bastante rigoroso. É difícil ser aprovado e se formar.

No meu mundo ideal, eu formaria professores da mesma maneira que os médicos. Ou seja, os professores se formariam na universidade e depois deveriam passar três anos combinando o ensino com o conhecimento de outros professores mais experientes.

Dessa forma, em seu primeiro dia como professores, eles não apenas aplicariam o que aprenderam na universidade, mas também continuariam este processo na companhia de outro professor que os ajudaria a melhorar suas habilidades.

BBC News Mundo – Quais são os principais desafios da educação na América Latina?

Beard – O principal é a questão da desigualdade. Acredito que o sistema educacional na América Latina é significativamente desigual, se compararmos o nível mais alto com o nível mais baixo.

Há escolas excelentes, mas a grande maioria delas é acessível apenas aos setores mais ricos da sociedade. E quando você olha para o outro lado, você tem escolas que realmente estão lutando pela sobrevivência.

Essa desigualdade é muito mais evidente entre centros urbanos e áreas rurais. E esse é um desafio a que devemos prestar atenção não apenas de maneira abrangente, mas urgente.

Acho que o outro grande desafio é o acesso à educação para muitas crianças. Sem mencionar uma educação de qualidade: há lugares onde as crianças só têm acesso a cinco anos de escola, e nada mais.

E o terceiro ponto, acho que o mais crítico, são os professores. Que também é o maior desafio em todo o mundo. Temos de resolver os problemas de formação, mas não apenas isso, de capacitação, de fomento à profissão, para que não troquem a sala de aula por empregos mais bem remunerados.

Acredito que precisamos nos questionar sobre vários aspectos: como podemos formar professores melhores dentro das escolas? Como podemos fazer com que ensinar seja uma profissão atraente para as pessoas?

BBC News Mundo – Muitas escolas da América Latina são religiosas ou confessionais. Isso é um obstáculo para um processo de aprendizagem ideal?

Beard – Bom, acho que há dois elementos que são fundamentais no trabalho que a escola faz hoje.

Por um lado, ajuda os alunos a entender quem eles são como cidadãos, como membros de uma comunidade. E transmite os valores dessa comunidade.

Por outro lado, existe o objetivo de formar pessoas criativas, comprometidas com a sociedade e que desejam acessar o máximo de conhecimento possível.

As escolas religiosas, na maioria dos casos, desempenham muito bem o primeiro papel, mas não podem cair no erro de limitar a execução de projetos educacionais instigantes que ajudem a desenvolver as habilidades necessárias para enfrentar o século 21.

Estou convencido de que elas podem fazer isso. Também sei que é difícil porque requer uma mudança cultural, mas se você conseguir separar esses aspectos, poderá desenvolver projetos maravilhosos.

Por exemplo, há uma escola em Barcelona chamada Escola Nova 21, administrada por religiosos, mas que ao mesmo tempo é uma das escolas mais futuristas e interessantes de todas as que visitei para documentar no livro.

Lá, eles estão realmente conectados com o tema da tecnologia, os alunos realizam projetos baseados em questões da vida real, onde aprendem a colaborar entre si para resolver problemas em um ambiente natural de aprendizagem.

Mas, ao mesmo tempo, todas as professoras são freiras. E viajam pelo mundo falando sobre educação no século 21, sobre como preparar os jovens para enfrentar os atuais desafios econômicos e sociais, como a desigualdade e o aquecimento global.

BBC News Mundo – Outro projeto que você cita no seu livro é o da Khan Academy, que na América Latina funciona, por exemplo, em alguns lugares da Amazônia.

Beard – Sim, um dos desafios que regiões como a América Latina enfrentam constantemente é que há alguns lugares onde o acesso aos centros urbanos é quase impossível.

Por esse motivo, novos modelos devem ser criados, para que jovens e crianças possam receber uma boa educação em locais onde é muito difícil a chegada de professores.

E o exemplo da Khan Academy é muito bom porque consegue utilizar de forma adequada as novas tecnologias para criar projetos de educação a distância, que funcionam muito bem e que podem contribuir para o bom desempenho dos estudantes.

Mas o fato é que o conceito da Khan Academy necessita de uma infraestrutura de acesso à internet para funcionar. E, além disso, ainda que tenha a infraestrutura, um dos grandes desafios que esses lugares enfrentam é a baixa retenção nos cursos de educação à distância.

Por isso, o que eles estão fazendo lá é revolucionário, porque entenderam o processo de educação à distância, mas não esqueceram da importância dos professores para otimizar a educação oferecida.

BBC News Mundo – ‘Estamos caminhando para uma sociedade que compartilha suas ideias, a partir de uma fonte irrestrita de conhecimento’. Esta é uma frase sua, como se traduz esse conceito na educação do futuro?

Beard – Um dos grandes problemas que o sistema educacional atual tem é o fato de estabelecer uma espécie de competição constante entre os alunos.

Na Coreia do Sul, um dos países que visitei para escrever o livro, há um exemplo extremo disso: os alunos fazem uma prova aos 18 anos para estabelecer um ranking nacional que praticamente decide que emprego você pode ter e para qual universidade você pode ir.

Basicamente, toda a sua saúde, riqueza e felicidade, e todo o sistema educacional até aquele momento, se traduz essencialmente em uma corrida para alcançar a posição mais alta possível.

E isso causa uma série de comportamentos terríveis. Quatro ou cinco anos antes da prova, os jovens passam 15 horas por dia estudando durante a semana, e 12 horas no fim de semana. Eles se tornam muito competitivos nas instituições de ensino.

Eles não compartilham o conhecimento. Não há colaboração. A ideia de desenvolver um projeto paralelo os aterroriza, porque significa que, enquanto estão se dedicando a ele, os outros alunos estão se preparando para o exame.

E isso cria um ambiente fechado, com pouca criatividade, sem colaboração. E agora sabemos que esses três valores: abertura, criatividade e colaboração, são fundamentais para o mundo de hoje.

Estamos enfrentando desafios que só podem ser superados por meio da colaboração e da imaginação humana. Isso nos obriga a contar com pessoas aptas a desenvolver uma inteligência coletiva, além da inteligência individual.

Mas ainda vemos que os estudantes não compartilham conhecimento em nossos sistemas educacionais, tampouco há colaboração, porque estão competindo. Há, inclusive, professores que não aceitam que ninguém diga a eles como podem fazer seu trabalho melhor.

Uma das coisas que mais me impressionava quando eu era professor é que nenhum colega vinha à minha sala de aula, e eu tampouco ia às salas de aula de outros colegas. Parece que o que estamos fazendo é tão vergonhoso que não merece ser visto por ninguém. Pessoalmente, acho que precisamos abrir nossas salas de aula.

Há vários estudos bastante sérios que demonstram a eficácia de sistemas abertos, onde a criatividade é incentivada, onde são geradas mais ideias. E isso a própria natureza nos ensina: à medida que um animal cresce, consegue ser muito mais eficaz na hora de concretizar e canalizar a energia que precisa para sobreviver.

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Este artigo faz parte da versão digital do Hay Festival Cartagena, encontro de escritores e pensadores realizado na cidade colombiana entre 30 de janeiro e 2 de fevereiro de 2020.

Fonte: BBC