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Sem conseguirmos contratar médicos e professoras, não há PRR que nos safe

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No dia 14 de setembro de 2021, Tiago Brandão Rodrigues, ministro da Educação, assinalou a abertura do ano letivo na Escola Secundária do Cerco, no Porto. Afirmou que é um ano “que se segue a muitos constrangimentos” e que “é preciso recuperar muitas das aprendizagens perdidas”. Comprometeu-se ainda a “trabalhar e a dar condições às escolas para elas responderem às necessidades de cada uma das crianças, não deixando ninguém para trás”, descansando-nos: “O Ministério da Educação está sempre muito atento às vicissitudes das escolas”.

Dois meses depois destas declarações, o Expresso noticiou na semana passada que havia ainda 1100 turmas com “furos” no horário, que é como quem diz, professores em falta a uma ou várias disciplinas. A Fenprof estima 20 mil alunos sem professor. As carências seriam ainda maiores se não houvesse professores e professoras a fazer horas extraordinárias para colmatar a falta de colegas; sobrecarga que, aliás, estão impedidos por lei de recusar.

O Ministério da Educação explicou ao Expresso que as tais 1100 turmas com furos representam uma pequena parte das mais de 50 mil que existem em todas as escolas portuguesas. Mais de 2% das turmas não são migalhas. Sobretudo em face da necessidade de recuperar aprendizagens reconhecida pelo ministro, depois de dois anos letivos estilhaçados, no país que se destaca na União Europeia pelo elevado número de dias de ensino à distância acumulados. Mas isto não é só uma questão de quantos. É preciso saber quem. Não quero ser mal interpretada: a falta de professores na escola pública é sempre um falhanço do Estado numa das suas funções mais importantes. Mas se, ao menos, for em bairros mais privilegiados, haverá mais famílias capazes de recorrer a explicações para colmatar a falta de ensino na escola.

Segundo os dados da Fenprof, os distritos com mais horas de ensino por preencher são Lisboa (34.708 horas), Setúbal (14.687 horas) e Faro (8504 horas). O Expresso fala de maiores carências na região de Lisboa e Vale do Tejo e dá vários exemplos de escolas nas periferias da área metropolitana. O Algarve era a região do país com maior taxa de pobreza em 2019. Setúbal é um distrito fustigado pela precariedade, desemprego e pobreza. Tudo parece sugerir que a falta de horas de ensino se concentra em regiões com populações mais carenciadas. Ou seja, precisamente aquelas que estiveram menos equipadas para aprender à distância e que têm, por isso, mais aprendizagens para recuperar.

Vale a pena olhar para o exemplo do Agrupamento Aqua Alba, no Cacém, referido pelo Expresso. Este agrupamento já contratou mais de 100 professores neste ano letivo. Acontece que as pessoas contratadas acabam por não permanecer ao serviço da escola, porque o salário não compensa as deslocações e o custo de vida. A escola volta, assim, a lançar o concurso. Depois de duas recusas da mesma oferta, a escola tem o direito de procurar preencher as vagas através de “ofertas de escola”, que é como quem diz, sem passar pelas plataformas centralizadas de colocação de professores do ministério. O Agrupamento Aqua Alba, só em outubro, lançou mais de 60 destas ofertas. Ou seja: são 60 vagas que foram sucessivamente recusadas (ou para as quais não há candidatos adequados nas listas nacionais). Neste processo de pára-arranca de lançar concurso, aparecer alguém, ficar ou não ficar, ou não chegar a aparecer nenhuma candidata, o tempo vai passando. E assim se chega a esta altura sem professores.

O ministério anunciou entretanto a criação de uma task-force para ajudar as escolas a preencher as lacunas. Porquê esperar até final de novembro? Não é que esta situação não fosse previsível: as dificuldades de contratação têm sido sistemáticas nos últimos anos. O pior é que, mesmo tardia, é pouco provável que a task-force funcione. Descarreguei do site da Fenprof um documento sobre os professores em falta, atualizado a 18 de novembro, que contém dois gráficos com a evolução semanal das vagas. A diminuição, desde início de outubro, tem sido muito ténue, que é para não dizer quase nenhuma. O que mostra que o pára-arranca de recrutamento de escolas como a do Cacém não está a funcionar: estabilizou num número de vagas que é virtualmente impossível de preencher. Com ou sem task-force.

A situação vai agudizar-se no futuro próximo. O Ministério da Educação publicou esta semana o “Estudo de diagnóstico de necessidades docentes de 2021 a 2030”. Ana Balcão Reis, José Gabriel, Luís Catela Nunes, Miguel Nunes e Pedro Freitas, economistas da minha faculdade, mostram que, dos cerca de 120 mil docentes em atividade no ano letivo de 2018/19, 40% vão reformar-se na próxima década. Em face desta enorme diminuição nas pessoas no ativo, vai ser necessário recrutar 34.500 docentes até setembro de 2030. Estamos a falar de uma renovação de quase um terço do corpo docente do nosso ensino público. O ministério pretende tornar mais expedito o processo de formação de professores, para garantir que os mais de três mil que vão ser necessários por ano estarão disponíveis quando o dia chegar. Deve haver uma maneira de fazer isto sem comprometer a qualidade do ensino, mas exige planeamento e antecipação. A tal que faltou neste ano letivo, apesar de toda a atenção prometida pelo ministro às vicissitudes das escolas. Só espero que não cheguemos a meio da década com uma task-force que corra atrás do prejuízo, quando já for demasiado tarde para o resolver.

Podia ser um problema exclusivo da educação, mas uma busca rápida na Internet devolve várias más notícias na saúde. Em janeiro de 2017, uma notícia dava conta de que 74% das vagas para médicos no sul do país tinha ficado por preencher. Em agosto deste ano, soubemos que um terço das vagas para médicos de família ficaram às moscas. Manuel Delgado, administrador hospitalar, escreveu na Visão em outubro que 40% das vagas abertas anualmente ficam desertas. Sem surpresa, também há excesso de horas extraordinárias nos hospitais. O diretor do Hospital de Faro dizia há dias ao Observador que os pediatras estão a fazer o dobro das horas extraordinárias permitidas por semana. Neste clima de falta de pessoal e exaustão das equipas, temos assistido a demissões em bloco de equipas de gestão sem condições para trabalhar.

O país anda muito excitado com os milhões da “bazuca”. Vamos modernizar escolas e construir hospitais. Mas, sinceramente: se depois não conseguirmos contratar professores e médicos para os pôr a funcionar, para que queremos hospitais novos e escolas modernizadas? Assim, não há PRR que nos safe.