No dia em que se comemora o Dia Nacional do Trabalhador Não Docente, a CNN Portugal foi conhecer histórias de quem se diz muitas vezes “esquecido” no sistema educativo. Têm um patrão, trabalham para outro e lamentam que nenhum deles se preocupe com a sua situação
Aos 49 anos de vida e “uns 15 ou 16” como assistente operacional numa escola, Elisabete Fradique (“Beta” para os alunos) tem muitas histórias para contar. A começar pela forma repentina como foi parar à profissão.
“Eu estava em casa sem trabalhar e tinha um filho. Um dia vim à escola tratar de um papel para o meu filho e perguntei se estavam a precisar de assistentes operacionais. Disseram que não, mas para eu trazer o currículo. No dia seguinte fui lá buscar o papel do meu filho e deixar o currículo. Ligaram-me logo um dia depois a dizer que tinham uma vaga e a perguntar se eu estava interessada. Era para fazer quatro horas para acompanhar um menino com necessidades educativas. Disse-lhes que não tinha experiência nenhuma a trabalhar com crianças especiais, mas que estava disposta a tentar”, recorda Beta.
O menino era Ricardo Monis (ou “Ricky”, como gostava que lhe chamassem). Aprenderam e cresceram um com o outro. Beta entrou para a profissão por causa de Ricky e ele rapidamente viu nela colo e casa. “Aquele menino marcou-me muito. Ele não ia a visitas de estudo, porque a cadeira de rodas dele era muito pesada e ninguém se queria responsabilizar. Quando comecei a cuidar dele, o Ricky começou a ir a visitas de estudo, ao teatro a Lisboa… Acompanhava-o na sala de aula, no almoço, dava-lhe a comida na boca”, conta.
Elisabete viu-se a cumprir tarefas para as quais nunca teve formação: “Tudo o que aprendi foi no terreno. Muitas coisas era ele que me ensinava.” E recorda o dia em que, ao dar-lhe o lanche na boca, o Ricardo se engasgou. “Comecei a dar-lhe pancadinhas nas costas e não resultava e ele muito aflito a olhar para mim, com os olhos muito abertos. Chegou a professora e, em vez de pancadinhas nas costas, deu-lhe uma pancadinha no peito e lá o desengasgou e ele olha para mim com os olhos muito esbugalhados e diz: ‘Quase que me deixavas morrer’ e lá me explicou que, quando voltasse a acontecer, para lhe bater no peito”, relata.
Acompanhou Ricky durante três anos e tornaram-se grandes amigos. Ricky formou-se em sociologia, escreveu um livro e Beta estava nas dedicatórias. Ricky morreu há seis meses e Beta ainda se comove quando fala nele.
Sem formação e “pau para toda a obra”
Elisabete Fradique faz parte do rol de trabalhadores não docentes, cujo dia nacional se comemora este domingo. Uma classe que tem estado em luta e protagonizado muitas greves, porque se dizem esquecidos, injustiçados e mal pagos. “Estou cá há 30 anos e recebo pouco mais do que quem entra agora. Pouco mais do que o salário mínimo. Não acho justo”, diz Maria Edmea Gonçalves, 65 anos, assistente operacional numa escola de Setúbal.
À semelhança de Elisabete Fradique, Luísa Pereira, 56 anos, entrou para o sistema educativo como “tarefeira”, para acompanhar uma criança com um problema de saúde. “Entrei em 2009, a tempo parcial. Fui para uma escola grande, com muitos alunos, quando aquela abriu. No ano seguinte, entrou um menino com espina bífida que se deslocava em cadeira de rodas e tinha de ser algaliado várias vezes ao dia, porque não conseguia sozinho esvaziar a bexiga e fazia infeções urinárias”, começa por contar.
“Ninguém tinha formação para cuidar do menino e eu também não. Tinha pouca experiência com crianças, mas teve de ser. Tive uma mini formação de uns 20 minutos, com a mãe e com uma enfermeira”, recorda.
Luísa considera que os assistentes operacionais “são pau para toda a obra”. “Somos mães, psicólogas, enfermeiras, empregadas de limpeza… temos mil e uma funções. Há meninos que precisam de muito carinho… às vezes querem desabafar, outras vezes só querem estar ao pé de nós. Apesar de tudo, gosto muito daquilo que faço. Das limpezas não, mas da parte de estar com as crianças gosto muito”, diz.
O diretor escolar e presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), Filinto Lima, concorda que os assistentes operacionais têm tarefas diversificadas e indefinidas: “São pau para toda a colher, fazem limpezas, apoiam alunos com necessidades educativas, apoiam professores…”.
“Os assistentes operacionais têm um salário muito baixo para as suas responsabilidades. As pessoas estão mais velhas, mais cansadas e mais exaustas”, resume Filinto Lima.
Mais do que “um problema salarial”
O Dia Nacional do Trabalhador Não Docente foi instituído pela Federação Nacional de Educação (FNE) e comemorado pela primeira vez há quase 20 anos, a 24 de novembro, porque foi nessa data que foi publicado o diploma do regime jurídico do trabalhador não docente, em 1999.
Daí para cá, garante Pedro Barreiros, atual secretário-geral da FNE, “a evolução legislativa foi sendo sempre em prejuízo dos trabalhadores”. Os trabalhadores não docentes têm um patrão, mas trabalham para outro: são contratados pelas autarquias, mas exercem funções nas escolas do Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI).
“O problema não é apenas salarial, a partir do momento em que estes trabalhadores não têm legislação que defina as suas funções e a sua carreira. A legislação que existe é muito difusa e muito dispersa. Neste momento, por exemplo, ninguém sabe o que tutela o quê nem sob a alçada de quem estão. São dos municípios, mas trabalham nas escolas do Ministério da Educação. No meio de todas as instituições, o trabalhador não sabe com que linhas se cose”, considera o dirigente sindical, sublinhando que os sindicatos defendem “que estes trabalhadores devem estar sob alçada do Ministério”.
“O próprio MECI não sabe quantos trabalhadores não docentes tem nas escolas”, garante.
“O MECI afirmou-nos que há uma reivindicação que não vão acatar, que é a criação das carreiras especiais, mas disse-nos que querem definir o perfil e a estruturação da carreira”, revela Pedro Barreiros, que garante que “há exemplos de trabalhadores da câmara que são colocados na escola sem formação nenhuma”.
Barreiros lembra que, dentro da escola, há uma série de funções básicas a que tem de se dar resposta. Desde os assistentes operacionais, que fazem “um pouco de tudo”, a assistentes técnicos, a psicólogos, a terapeutas, a escola é feita de muito mais do que só de alunos e professores. Pedro Barreiros lamenta que “não haja a perceção na sociedade da importância destes trabalhadores”.
“Quando há um esforço para trazer a paz e a acalmia às escolas, não podemos olhar só para os professores. Temos de olhar também para o pessoal não docente”, argumenta o sindicalista.
Escola muda, mas os rácios não
As greves das últimas semanas têm fechado escolas quase todas as sextas-feiras, desde o início do ano letivo. “Muitas destas pessoas estão a fazer greve como sinal de cansaço”, defende Filinto Lima.
A escola pública mudou muito, argumenta o responsável. Há mais alunos estrangeiros, há mais crianças com necessidades educativas especiais. Mas a portaria que dita o rácio de funcionários escolares por número de alunos não é revista há três anos. “As autarquias cumprem o que diz a lei. Mas temos de atualizar a portaria. É preciso fazer chegar mais funcionários às escolas, com comparticipação do Ministério às autarquias, que se queixam do défice enorme”, sublinha.
“Fazem falta psicólogos nas escolas. Faltam terapeutas da fala. Faltam assistentes operacionais. Faltam também porquê? Os rácios são cumpridos, mas quando estes trabalhadores metem baixa não há quem os substitua e quem lá fica tem de fazer o seu trabalho e o do parceiro do lado”, acrescenta Pedro Barreiros.
Em setembro deste ano, aquando do início do ano letivo, estimava-se que estivessem em falta 664 técnicos nas escolas públicas portuguesas, entre psicólogos, terapeutas da fala, assistentes sociais ou informáticos, por exemplo.
E a falta de trabalhadores não docentes nas escolas, acrescenta, “é potenciador do bullying, da indisciplina, da violência”. “Neste momento, há casos de alunos com sete ou oito anos a agredirem colegas. Se houvesse assistentes operacionais em número suficiente nos corredores das escolas, isto não acontecia. Pelo menos não com tanta frequência e não nesta dimensão. Os trabalhadores não docentes são de extrema importância”, acrescenta o dirigente da FNE.
O “primeiro rosto” da escola
Depois de cuidar de Ricardo Monis quase em exclusivo durante três anos, Elisabete Fradique passou por várias funções. Esteve ainda afeta a uma unidade com crianças com necessidades educativas especiais, esteve nos corredores dos blocos, no pavilhão e passou pela portaria da escola, onde esteve “seis ou sete anos”. “Na portaria, nós é que apanhamos com tudo, com um pai que vem mais descompensado, por exemplo… somos o primeiro rosto da escola. Nunca tive grandes problemas, sempre consegui gerir. Mas não é fácil”, garante.
Elisabete reconhece “o desgaste psicológico muito grande”, mas admite que não se vê a fazer outra coisa nos anos que lhe faltam para a reforma. “Às vezes digo que gostava de mudar para uma área mais descansada, mas digo a verdade… vejo-me a fazer isto até à reforma porque me identifico muito com as crianças. Sinto que sou confidente dos adolescentes. Muitos procuram-me para falar comigo. Isso é gratificante”, diz.
Como Elisabete, também Luísa Pereira não pensa mudar de profissão. Foi empregada de balcão durante mais de 20 anos. É no meio das crianças e dos adolescentes que, garante, se sente “realizada”.