Há um par de semanas, num programa de info-entretenimento (Governo Sombra), um ex-governante em actual repouso no mundo empresarial (Adolfo Mesquita Nunes) mostrava-se preocupado com a ausência de conteúdos nos programas disciplinares sobre o que chamou “Economia Digital”. Como o tema não foi desenvolvido, nem o programa é para isso, fiquei sem perceber exactamente ao que ele se referia. Se ao que agora é muito comum referir-se como a necessidade de dominar as ferramentas tecnológicas (digitais) que se apresentam como essenciais para a vida no século XXI, mas que depois não passa de uma introdução ao estatuto de utilizador/consumidor de plataformas digitais, se estava a pensar em algo menos imediato como o funcionamento da verdadeira Economia Digital em que vamos sendo mergulhados de forma acelerada, sem que façamos quase nada para isso.
Se por Economia Digital entendermos o que alguns autores consideram ser uma fase completamente nova ou mesmo algo perfeitamente diverso do modelo capitalista como ele foi pensado até ao final do século XX (cf. Mckenzie Wark, Capital is Dead. Londres: Verso, 2019), em que o maior valor passou a estar na informação sobre os indivíduos e os seus hábitos e a forma como a adesão alargada aos novos aparatos tecnológicos e ferramentas digitais para as mais pequenas operações do dia-a-dia passou a estar monitorizada por uma multiplicidade de aplicações instaladas voluntariamente (ou por defeito) em computadores, tablets, smartphones e até relógios, acho muito interessante que o tema seja abordado nas aulas de modo a que os indivíduos percebam até que ponto muitas das suas acções passaram a ser meros pontos em vectores de informação, destinados a alimentar algoritmos que, por sua vez, lhes fornecem “gratuitamente” sugestões para continuarem a consumir e assim manterem um ciclo permanente de fornecimento de mais informação a terceiros. Informação cedida quase sempre de forma voluntária, porque inconsciente. Ou porque, afinal, a app é gratuita e dá muito jeito, sem que se perceba tudo o que lhes está associado e como isso pode ser comercializado de forma altamente lucrativa. Mesmo a mais pequena pesquisa num motor de busca acarreta que se aceite a “politica de privacidade” do fornecedor do serviço, da qual nem 1% da população se preocupa em ler as letras grandes, quando mais as pequenas.
Neste momento, a quase totalidade dos agrupamentos e escolas recorre a plataformas digitais para registo dos alunos e dos seus dados (assim como de professores e funcionários), bem como da generalidade das suas rotinas diárias. Centenas de agrupamentos e milhares de escolas já cedem uma massa imensa de informação a um conjunto muito restrito de empresas privadas que cobram por esse serviço, ficando na posse de dados de todo o tipo (familiares, económicos, geográficos, de aproveitamento, assiduidade e sua tipificação) sobre os alunos e famílias. Só no meu distrito, cerca de 50 agrupamento e escolas não agrupadas recorrem à mesma empresa. Outra plataforma, com mais implantação em outras zonas do país, anuncia que todos os dias mais de 500 escolas recorrem à sua plataforma. A conversão em informação digital de algo tão simples como os consumos nas papelarias e bares escolares permite a acumulação de informação em servidores externos, com níveis de segurança muito frágeis, que, mesmo que sejam respeitadas as regras legais ou éticas no seu armazenamento e uso, podem ser “roubados” a qualquer instante por um hacker mediano. Tudo pode ser vendido. Tudo pode ser subtraído. O que comemos, o que gastamos, quando, onde, a que ritmo. Até as doenças dos alunos ou as suas necessidades específicas ao abrigo do DL 54/2018.
Que se queira acrescentar uma nova camada de cedência de dados – quando se defende que as aulas sejam suportadas quase só em meios digitais – acerca da prática docente, dos hábitos de estudo, dos recursos usados, quando, onde, como, é subir outro nível – mas um nível muito importante – na entrega de informação dos alunos a plataformas online sem que exista uma garantia efectiva da manutenção da sua privacidade, já que o seu uso para efeitos comerciais é quase inevitável, mesmo que encoberta por termos como “partilha de informação” ou “busca de estratégias mais eficazes de gestão”. E há algum cuidado com isso quando se assinam contratos que quase todos os que cedem os dados desconhecem?
A alternativa é o regresso à idade da pedra do papel como suporte único? Nada disso, é começar por repensar o que se entende e queremos quando falamos em “Economia Digital”.