As imagens da manifestação deste sábado dos professores lembram perigosamente – para o Governo e para a sociedade em geral – as imagens da manifestação de 2008, quando era ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues. A disparidade dos números avançados pela polícia e pelo sindicato é enorme. Mas, simbolicamente, esta manifestação, com muito menor enquadramento sindical do que a anterior, simboliza o esgotamento de uma classe inteirinha que Maria de Lurdes Rodrigues se esforçou por destruir, afogando-a em burocracias, e os governos seguintes nunca encontraram qualquer solução de fundo. Ouvir António Costa, primeiro-ministro há sete anos, vir dizer que a precariedade entre a classe docente é “inaceitável” rasa o absurdo. Se é “inaceitável”, o que é que o seu Governo fez para mudar o estado das coisas? Assim, de repente, não se está a ver nada de estrutural – e esta seria uma boa “reforma estrutural”, essas duas palavrinhas mágicas para um grande número de pessoas.
A questão é que o Governo, ao repetir o mantra da “geração mais qualificada de sempre”, esquece que quem está a contribuir para esse dado estatístico é tratado abaixo de cão pelo Estado. Peço desculpa: é mesmo abaixo de cão. Basta ler a reportagem publicada este sábado no PÚBLICO para ficar com uma ideia.
O problema ou não problema da municipalização dos concursos de professores é apenas a gota de água, um disparar da pressão numa panela que está ao lume há um monte de anos. O Estado social – saúde e educação tendencialmente gratuitos – está a esboroar-se sob os auspícios de um governo socialista que até há um ano contou com os bons ofícios do Bloco de Esquerda e do PCP. Este colapso não favorece, de todo, a esquerda.
Convencido de que tudo o que se passou do Natal até agora pode outra vez ser arrumado naquilo que são, para António Costa, os “casos e casinhos” da “bolha mediática”, o secretário-geral do PS, na comissão nacional deste sábado, quase que ia ignorando a crise em que os socialistas se encontram desde que perceberam a reacção popular ao facto de a ex-secretária de Estado do Tesouro Alexandra Reis ter saído da TAP com uma indemnização de 500 mil euros – e daí transitando para a NAV e de lá para o ministério de Fernando Medina. Ficou só uma frasezinha, mesmo no fim do discurso: “Da escolha de presidente de junta de freguesia à de membros do Governo temos mesmo de ser muito exigentes, muito mais exigentes.”
Se Costa parecia ter mudado de discurso no debate do Parlamento na quarta-feira, percebe-se que foi apenas e só um exercício para inglês ver. A ideia de “virar a página” apressadamente ficou exposta nesta intervenção na comissão nacional. A questão é que a página não vira porque o primeiro-ministro decide: a página existe, porque o país é pobre, a sociedade é profundamente desigual e um professor de 50 anos ganha 1000 euros, enquanto uma administradora da TAP tem uma indemnização de 500 mil euros para sair da empresa e emprego de nomeação governamental no dia seguinte.
Na verdade, é uma sociedade organizada entre nobreza e povo – e, se ao povo pede-se tudo, à nobreza tolera-se evidentemente tudo e um par de botas. Esta é mais uma explicação para o tamanho da manifestação de professores. Já não se pode dizer “que se lixe a troika”, porque a troika já não está cá. Mas talvez se possa dizer “que se lixe o superavit” ou “há vida para além do Orçamento”, como disse em outra encarnação o Presidente da República Jorge Sampaio.