A professora de Português suspeita de ter avisado uma aluna da matéria que ia sair no exame nacional de Português, Edviges Ferreira, foi condenada por violação de segredo por funcionário — fica em liberdade, mas tem de pagar uma multa de 1170 euros. Foi absolvida da acusação de abuso de poder.
A juíza do Campus da Justiça que proferiu a sentença decidiu baseada na lógica e na sua convicção, uma vez que não existem provas do cometimento do crime. E apesar de ter condenado a docente disse também que a gravidade do que se passou não é tão elevada como se poderia supor, uma vez que a arguida não passou à adolescente, a quem dava explicações privadas, o enunciado da prova. Nem ficou provado que a tenha preparado com as respostas. Apenas lhe revelou dois temas, de entre uma dezena que a aconselhou a estudar. Contas feitas, foi um passo mal dado numa carreira bem-sucedida, referiu: “Confiou nas suas capacidades” para manter secreto o conteúdo do exame. “Mas não foi isso que sucedeu e tenho a certeza de que está mais do que arrependida”, disse ainda a magistrada.
O facto de não ter cadastro, de ter construído uma excelente reputação profissional ao longo de 43 anos de carreira e de estar socialmente integrada funcionaram como atenuantes para a pena aplicada ter sido apenas uma multa, num crime cuja moldura penal vai até aos três anos de cadeia.
O caso remonta a 2017, ano em que a também presidente da Associação de Professores de Português teve acesso antecipado às provas da disciplina para o 12.º ano, para poder emitir um parecer sobre a sua validade científica. As suspeitas recaíram sobre esta docente da Escola Secundária Rainha Dona Leonor, em Lisboa, depois de uma estudante da rede de amizades da explicanda ter partilhado uma gravação áudio pelo WhatsApp: “Ó malta, falei com uma amiga minha cuja explicadora é presidente do sindicato de professores, uma comuna, e diz que ela precisa mesmo, mesmo, mesmo só de estudar Alberto Caeiro e contos e poesia do século XX. Ela sabe todos os anos o que sai e este ano inclusive. E pediu para ela treinar também uma composição sobre a importância da memória…”
Sem ligações conhecidas nem ao PCP nem ao sindicalismo, a professora sempre negou ter passado informação confidencial à aluna – o que não impediu o Ministério da Educação de a demitir logo em 2019, na sequência de um processo disciplinar que concluiu que era culpada. De facto, o autor escolhido para o exame foi Alberto Caeiro, enquanto o tema da composição foi o da importância da memória. Aluna dos Salesianos, a jovem responsável pelo alerta no WhatsApp era conhecida da estudante da Escola Secundária Maria Amália, também em Lisboa, a quem Edviges Ferreira dava explicações. Além disso, quando aceitou auditar o exame teve de assinar um compromisso de honra em que se obrigava a não dar explicações de Português do 12.º ano.
Depois de ter sido ilibada em primeira instância, o Tribunal da Relação de Lisboa detectou contradições insanáveis na sentença que ditou a sua absolvição, no final de 2020. Ao perceberem que a decisão judicial de primeira instância dizia uma coisa e o seu contrário sobre aspectos cruciais do processo, não restou outra alternativa aos desembargadores senão mandarem repetir o julgamento.
Repetição que culminou, nesta segunda-feira, numa condenação por violação de segredo por funcionário, delito relacionado com a transmissão da informação confidencial. No que respeita ao crime de abuso de poder, foi ilibada por não estarem verificados os seus pressupostos. Não se percebe que benefício terá retirado da ajuda que deu à estudante. “Não se demonstrou que tenha sido pelo facto de ter tido acesso às provas que foi contratada para dar explicações”, refere a sentença, acrescentando ainda que os temas que Edviges Ferreira aconselhou a explicanda a estudar mais a fundo – a importância da memória e ainda o papel dos vizinhos no combate à solidão – não são evidentes. Pelo que a docente “não se teria lembrado de os sugerir se não tivesse visto a prova”. As coincidências não ficam por aqui: a juíza considerou “absolutamente incrível” que a autora da mensagem do Whatsapp se pudesse ter lembrado de inventar uma história com tantos pontos de contacto com a realidade. Esta estudante sempre disse que a informação lhe tinha chegado através de conversas que ouviu a outros jovens à porta de uma tabacaria, e não pelo seu círculo de amizades.
Ao beneficiar a aluna, a explicadora prejudicou todos os outros que se submeteram ao exame, lesando assim o interesse público. Numa declaração escrita enviada aos jornalistas depois de ser conhecida a sentença, Edviges Ferreira sublinha que foi ilibada e condenada no espaço de um ano pelo mesmo tribunal – embora por juízes diferentes. “Volto a afirmar que a decisão correcta dos tribunais é a primeira, uma vez que nunca em toda a minha carreira revelei a nenhum aluno o que saía nos exames e este caso não foi excepção”, observa, recordando que a sua explicanda teve negativa no exame e zero valores em várias respostas. O tribunal interpretou porém este último facto doutra forma: “A arguida não está acusada de lhe ter fornecido as respostas, mas de ter revelado o conteúdo dos temas”.
Edviges Ferreira atribui a sua condenação “ao alarmismo criado à época” e aos depoimentos das testemunhas, contraditórios entre si, para concluir que continuará até ao final da sua vida profissional a dar aulas e a ensinar o melhor possível os alunos, com imparcialidade e cumprimento do seu dever, como sempre o fez. Para o tribunal, as contradições em que incorreu a explicanda ao longo deste processo justificam-se pelo conflito de interesses em que se viu envolvida: tentou proteger quem a tinha ajudado.
A professora lecciona agora lecciona numa escola profissional. Nem ela nem o seu advogado revelaram se irá recorrer desta condenação.