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PÁGINA 7 – A ÚLTIMA – Luís Costa

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PÁGINA 7 – A ÚLTIMA

 

Como já muita gente sabe, divorciei-me, há muito, desta fantochada que é o regime de avaliação docente. Os primeiros conflitos — que começaram logo quando Maria de Lurdes Rodrigues fez esta reforma, no âmbito da qual instituiu a conversão dos escalões, empurrando toda a gente por aí abaixo — desembocaram na minha repulsa total. Atualmente, limito-me ao ordinário relatório de autoavaliação. Ancorei no sexto escalão e já não conto levantar ferros daqui. Muita gente me diz que só me prejudico, que o Estado é que fica a ganhar com esta minha atitude. E é verdade. Mas é assim que sou, escravo dos valores que entronizei. E estou disposto a sacrificar-me por eles. Se me rendesse às conveniências, teria mais dinheiro na conta, uma reforma mais quente, mas deixaria de ser quem sou, deixaria de gostar de mim. Não estou disposto a pagar tal preço por tão pouco.

 

Apesar desta decisão, há muito tomada — e de ter renunciado, formalmente, à primeira recuperação parcial do tempo de serviço congelado — plantei, no coração, as causas de todos, delas fazendo meu estandarte e por elas pelejando com todos os meus dons. Apesar de nada esperar, individualmente, de uma eventual conquista, dei tudo o que pude pela recuperação dos 6 anos, 6 meses e 23 dias e pelo desbloqueio do acesso aos 5.º e 7.º escalões. Apesar de constatar, desde muito cedo, e sobretudo após a aprovação do novo regime de concursos, que o amplo caderno reivindicativo se ia afunilando e reduzindo a estas duas exigências, acabando por se cingir à questão do tempo, que volta a estar, de forma exacerbada, na ordem do dia, nunca esmoreci, nunca recuei, nunca depus as armas. Sempre na linha da frente, lutei por estas causas muito mais do que muitos que as tinham como únicas razões para lutar. Dei-me todo, de corpo e alma, aos principais anseios dos meus pares.

 

O meu brasão, patente em todas as fotos tiradas diante da minha escola, sempre foi “EM DEFESA DA ESCOLA PÚBLICA”. No entanto, quando fui a Bruxelas entregar o meu extenso manifesto, com o mesmo título, não coloquei nas primeiras linhas as minhas causas mais íntimas, as minhas deusas, mas aquelas que eu sabia serem a aurora que quase todos queriam ver nascer primeiro. Não fui lá por mim, mas por todos e, em especial, pela Escola Pública, à qual dediquei a minha bandeira maior, pintada com as cores da pedagogia, da exigência, da ambição, da qualidade, do respeito, da defesa dos que dela mais precisam, da democracia. Sempre foi — e continua a ser — esta a minha deusa, apesar de a ver, efetivamente, cada vez mais secundarizada, ou mesmo esquecida, nos pregões que ainda se vão estirando na noite escura.

 

Como todos sabem, em março, decidi combater a arma com que o ministro da Educação vinha reduzindo a nada as nossas lutas. Estudei demoradamente as leis, um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, e fiz-me à tarefa de fundamentar a ilegalidade desse perverso expediente ministerial. Foi assim que nasceu o abaixo-assinado contra os serviços mínimos ilegais, subscrito apenas por 3540 professores, apesar de tão propalado na comunicação social, apesar de Santana Castilho, nos jornais e na televisão, ter legitimado e elogiado a argumentação e de ter, generosamente, apelado à adesão massiva. Foram muitos — demasiados, quase todos — os que não foram capazes de saltar os muros do egoísmo, da indiferença e do medo. Porém, não foram estes quem mais profundamente me feriu. Não foi nesse imenso mar morto que uma parte de mim se afogou. Estranhamente, paradoxalmente, o golpe mortal haveria de vir desse pequeno exército que em torno de mim se formou.

 

Chegados os dias A, B e C (26, 27 e 28 de abril), apenas quatro dezenas de professores avançaram para o prometido combate. Os restantes — alguns porque foram mesmo impedidos, mas a maioria porque se acobardou, das unhas dos pés até à ponta dos cabelos — ficaram lá longe, na sombra, na hipocrisia, aninhados, encolhidos, acocorados nos seus escuros e frios fojos de medo, deixando a descoberto quem avançou, confiando nessa falsa retaguarda que talvez nunca sequer tenha sido intenção. Alguns desses cobardes são conhecidos e prestigiados peroradores da causa docente. Acobardaram-se como todos os demais anónimos. Não souberam honrar a palavra dada, a sua própria assinatura. E o mundo continua a girar como sempre girou, com os mesmos profetas e os mesmos crentes, no mesmo palco, a perorar e a aclamar como sempre. Todavia, vai começar uma nova cena, porque uma personagem sai.

 

Para mim, as lutas gregárias terminaram: é o fim do desassossego coletivo, do combate ao conformismo, dos despertares pela razão e pela emoção, das sementeiras de crença e de ânimo, da formação de exércitos, da instigação à revolta. Porém, jamais abdicarei dos meus valores e dos meus ideais. Continuarei ao seu serviço, mas o meu caminho será absolutamente solitário. O acendedor de candeeiros não voltará a iluminar a cidade, mas mantém viva, sobre o altar da sua capela, a sua alma bruxuleante.

1 COMENTÁRIO

  1. Luís Costa percebo, mas lamento que assim seja.
    Também eu sou 1 de 3 e a única contratada que, no meu agrupamento, ousaram desafiar o sistema a 17 de março. Andamos agora a travar a luta para nos retirarem a falta injustificada que nos foi marcada.
    Td de bom para si e continue com convicções inabaláveis!

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