Nos finais dos anos 1980, tinha eu 20 e tal anos, tive a oportunidade de dar algumas aulas nos cursos do hoje extinto Departamento de Língua e Cultura Portuguesa, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Como já nessa altura me interessava por questões de léxico, os meus alunos eram estudantes de português do nível superior, que podiam escolher Estudos de Léxico entre outras disciplinas e as minhas aulas tinham muitos alunos “de Leste”, i.e., checos, romenos, búlgaros, polacos, da Alemanha Democrática, da União Soviética, alguns ainda meus amigos. Eram excelentes alunos. Seguramente também havia ucranianos, mas, na época, toda a geografia para lá da cortina de ferro era para mim uma enorme nebulosa vermelha, que começava então a esfumar-se e revelar que, afinal, cobria muitas nações distintas, com suas línguas, etnias, histórias, culturas, valores.
Dos ucranianos em particular comecei a ouvir falar pelos meados da década de 1990, quando começaram a imigrar para Portugal. Lembro-me das histórias da época, de serem explorados por empresários sem escrúpulos, de não verem as suas qualificações aceites pelas corporações autóctones, das empregadas domésticas e dos trabalhadores das obras que eram afinal médicos, engenheiros, professores… O mesmo acontecia com romenos, búlgaros, moldavos e também russos. Portugal nem sempre foi país de que a gente se orgulhe e aqueles anos foram particularmente constrangedores em termos de respeito pelos outros.
Lembro-me dos meninos que entravam nas escolas sem saber português e que em pouco tempo se tornavam os melhores alunos, devido a trabalho e à valorização que as suas famílias davam à educação e formação dos seus filhos. Lembro-me dos meus alunos de licenciatura, sempre os mais interessados, sérios, trabalhadores e, claro, mais bem-sucedidos. Na altura fiquei a saber por uma aluna ucraniana que, aos sábados, a comunidade reunia as suas crianças para estudar língua, história, geografia e partilhar valores culturais ucranianos. O uso e estudo da língua ucraniana, escrita em alfabeto cirílico, nunca prejudicou o rendimento destes meninos na escola portuguesa; bem pelo contrário. A sociedade portuguesa tem muito a aprender com esta comunidade.
Nos últimos semestres, comecei a ter, nas minhas turmas, estudantes ucranianos de segunda geração. Usam o português tão bem ou melhor que alguns “portugueses de gema”; em geral, revelam domínio de metodologias de aprendizagem eficientes, disciplina e respeito pelos outros. Claro que há exceções, como sempre. Cultivo por todos os meus alunos grande respeito, pois sei que o mundo é deles – 41 anos depois de ter começado a dar aulas, vi-os tornar-se gente válida, cidadãos plenos, pessoas admiráveis e relevantes. Pelos meus alunos ucranianos e pela comunidade que representam, tenho ainda grande admiração.
Numa altura em que assistimos àquilo que achávamos que não voltaria a acontecer e em que pululam tantos e tão variados especialistas em política internacional, assumo humildemente que tudo o que penso saber sobre o assunto não chega para opinar publicamente. É a emoção, a que faz de nós humanos, que me move. Ao falar dos ucranianos que conheço, quero expressar a minha solidariedade e admiração pelo povo ucraniano, que, junto com o povo russo, é mais uma vez peão e vítima do jogo viciado de um tirano enlouquecido e feroz.
E, sim, orgulho-me de pertencer a este país que defende a liberdade, promove a solidariedade e repudia a violência e a guerra.
Professora e investigadora, coordenadora do Portal da Língua Portuguesa