O horário impresso a cores está em cima da mesa e um x desenhado a lápis assinala as muitas disciplinas que Christine, de 70 anos, segue religiosamente todos os dias. Começa na segunda-feira às 9 da manhã com duas aulas de Português, para o 1º/2º anos e para o 3º e 4º, continua à tarde com Inglês e segue até sexta-feira, o dia mais ocupado de todos, com aulas de manhã à tarde. Pelo meio estuda Matemática, Francês e Estudo do Meio. “Vejo desde o primeiro dia. Gosto muito”, diz a belga que há sete anos se mudou para o concelho de Lagoa, no Algarve, e que é seguramente uma das mais entusiastas alunas das aulas que começaram a ser transmitidas na RTP a 20 de abril.
Concebidas para garantir o acesso ao ensino a todos os alunos do básico ao longo do 3º período e durante o tempo em que as escolas estão encerradas, a verdade é que a iniciativa “estudoemcasa”, uma espécie de nova telescola que o Ministério da Educação lançou e que ocupa agora a grelha televisiva da RTP Memória, acaba por chegar a muito mais gente.
A grande maioria dos telespetadores abrange a faixa etária dos 4 aos 14 anos — o público-alvo da iniciativa —, mas ao longo destas semanas uma média de 50 mil pessoas em idade ativa viram diariamente aquele canal entre as 9h e as 17h50. Segundo dados fornecidos pela RTP, seis mil têm mais de 64 anos. Também é certo que os primeiros dias foram completamente atípicos em termos de audiência. No primeiro dia, a RTP Memória chegou a ser o quarto canal mais visto (só atrás da SIC, TVI e RTP 1) e as aulas da manhã bateram recordistas como “O Programa da Cristina”. Passado o efeito surpresa, os valores desceram e estabilizaram próximo dos 70 mil. A estes juntam-se outros milhares que veem em diferido, no site ou através da RTP Play (ver infografia).
Entre os telespetadores adultos, há pais e avós que estão simplesmente a acompanhar os filhos e os netos. Como Emanuel, 69 anos, que vê sempre as aulas ao lado do neto Pedro, de 9, enquanto a mãe, também professora, dá aulas aos seus alunos à distância. “Há coisas que ainda me recordo. Pergunto-lhe: Pedro, estás a perceber? Isto são frações. Vejo do princípio ao fim. Tento ajudá-lo e eu também gosto de ver. No meu tempo, os sólidos ficavam no armário. Agora não, é tudo muito bem explicadinho”, elogia o avô.
Há também quem aproveite para aprender línguas, recordar conhecimentos antigos e descobrir novas coisas ou ainda para treinar o português. É o caso de Christine: “Preciso destas aulas para falar bem o português, fazer compras e tratar de coisas nos serviços administrativos”, resume. Em cima da mesa da sala, estão gramáticas, dicionários, cadernos de atividades do 1º ciclo, uma calculadora, um corretor e uma caneta para sublinhar. Aos 70 anos, Christine mostra os seus livros com o mesmo entusiasmo de uma criança que recebe os manuais novos para a escola. Folheia e assinala o que antes não percebia e que aprendeu com a telescola. As sílabas, os verbos regulares e irregulares, os cês com e sem cedilha de “cabaça” e de “cabacinha” e que escreve no caderno com letra redonda, para não se esquecer.
“É música”, diz e balança o braço enquanto ouve o professor a dar a aula. Entre as disciplinas de eleição estão o Português e a Matemática. “Muito bem organizado, muito bem preparado. Os dois usam o mesmo texto para dar a matéria. É muito bem pensado. Inglês e francês também ok”.
O interesse surgiu mal ouviu falar da iniciativa. “Pensei: isto é uma coisa para mim.” Pediu a uma das filhas da vizinha e ‘professora’ do dia a dia que lhe arranjasse um horário e não parou de acompanhar. Agora quer comprar um computador para poder ver no site as aulas a que não consiga assistir em direto.
APRENDER ALEMÃO E A II GUERRA MUNDIAL
Esta é uma das diferenças entre a telescola que permitiu a milhares de alunos completarem o 5º e o 6º ano de escolaridade nas décadas de 1960 a 1980 e a iniciativa #estudoemcasa, criada para garantir alternativa ou um complemento ao ensino à distância em tempos de pandemia. Se antigamente os alunos se juntavam na escola para ouvir e ver o professor a preto e branco na televisão (foi assim até 1980), sendo acompanhados por outros dois em sala, agora está cada um em sua casa. A vantagem é que podem puxar o programa para trás ou ver à hora e no dia que der mais jeito.
É esta possibilidade que permite a Manuel Vaz Nunes, 68 anos, não faltar à aula de Alemão do 3º ciclo às terças-feiras e cujo horário coincide com a aula online de dança de salão da Academia Sénior de Gaia. Por causa da pandemia, também as universidades da terceira idade encerraram e muitas transitaram igualmente para o ensino à distância. Mesmo as aulas de tango, pasodoble ou salsa. “É todos os dias, através do Facebook e durante uma hora. O professor prepara as aulas para par e solo. Eu faço com a minha mulher, que também dança”, explica o ex-diretor do Agrupamento de Escolas de Valadares.
Quanto às aulas na RTP Memória, Manuel Vaz Nunes lembrou-se que podia aproveitar para melhorar o seu conhecimento de inglês — “vejo as aulas do 9º ano para melhorar a pronúncia e o vocabulário” e de alemão, idioma com o qual se familiarizou através da música e da sua participação em coros, mas que nunca chegou a aprender com aulas. A mulher, também ex-professora, assiste ao Alemão e a História do 9º ano. “O horário está afixado na cozinha e eu vou tirando os meus apontamentos. Há trabalhos para casa que têm a ver com o manual e isso eu não tenho. De resto, faço tudo como se fosse um aluno.” E ao fim de mês e meio de aulas já sente melhorias, garante o ex-diretor, que vê nesta iniciativa uma forma de assegurar a “educação ao longo da vida”.
Foi sempre esse o lema de vida de Maria de Fátima, 66 anos, ex-funcionária bancária. “Não me lembro de estar só a trabalhar. Tinha de tirar um curso de pintura em porcelana ou ioga tibetano, por exemplo.” Depois da reforma, inscreveu-se na universidade sénior de Carnaxide e agora é através do estudo em casa que continua a acumular conhecimentos. “Está tão bem feito, mas tão bem feito. No outro dia estive a ver uma aula sobre a II Guerra Mundial e em 30 minutos explicaram de uma maneira que toda a gente entende. Costumo acompanhar Matemática, Português e História. E os separadores que ensinam tanto como as aulas. Hoje estava a dar um sobre as casas de banho há 100 anos. Ou a história das vacinas.”
“Acho que estas aulas são muito úteis para as pessoas da minha idade (66 anos) e que estão em casa”, concorda Adelaide Luís, também ela aluna de uma universidade sénior, em Sintra. “Tem coisas interessantes e acabei por me agarrar à telescola. É uma maneira de aprender mais coisas.” Quando não se ocupa das flores do jardim, vai ouvindo as aulas de Estudo do Meio, História, Geografia e Inglês, que aprende também com a ajuda de uma aplicação que as filhas puseram no telemóvel.
As aulas na RTP Memória terminarão com o ano letivo, a 26 de junho. E sobre o futuro o Ministério da Educação não adianta ainda respostas. Quando o Expresso pergunta a Christine como vai continuar a aprender depois, a belga solta uma interjeição de estupefação e tristeza: “Oh! Não vai dar mais?” Para já, Christine tem uma mensagem: “Muito obrigado a todos, mas especialmente aos professores de Matemática e de Português.”