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O vírus do ensino – Luísa Castanheira Neves

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Os exames de acesso ao ensino superior deste ano fazem transparecer o estado doentio em que se encontra, há algum tempo, o sistema educativo. As circunstâncias excecionais geradas pela pandemia de covid-19, podendo em parte atenuar o juízo de desvalor relativamente aos enunciados apresentados, não são de molde a justificar globalmente o fenómeno a que se assiste. Na verdade, mais do que a dificuldade ou facilidade das provas que representam o culminar do secundário, aquilo que se observa é ao domínio de um tipo de racionalidade que desvaloriza por completo o conhecimento, a cultura, o estudo, o esforço, a construção firme do espírito crítico dos mais jovens. O exame de português é disso exemplo claro. Articulando diversos domínios, que não podem deixar de se entrecruzar – a compreensão do texto, a educação literária, a escrita e a gramática – uma leitura ainda que superficial dos desafios propostos aos estudantes permite-nos perceber que a educação literária foi relegada para segundo ou terceiro plano, tendo um peso residual na economia da prova. É certo que o texto literário está presente, com a sua complexidade própria, formulando-se, a partir dele, várias questões. Mas, se ele se afigura fundamental na testagem do domínio decisivo de compreensão do texto, deve também ser valorizado, como aliás se evidencia no documento que formaliza o programa da disciplina, como “repositório essencial da memória de uma comunidade, um inestimável património que deve ser conhecido e estudado”.

Tudo isto não seria grave se não fosse fator de desagregação cultural, de perda dos alicerces do desenvolvimento da personalidade, de emergência de um mundo eficientista, limpo, desprovido de emoção, incapaz de conhecer as raízes do ser humano, de o reconhecer nas múltiplas personagens que os autores criaram ou cantaram, incapaz, ainda, de valorizar os seus antepassados e, por fim, incapaz de discernir e criticar a sociedade em que está mergulhado. A literatura é também veículo de promoção de valores nacionais, meio de contacto com outros modos de ser e outras épocas históricas, forma de abertura ao conhecimento do mundo e à sensibilidade, instrumento de compreensão dos sentimentos alheios e próprios. De uma racionalidade de tipo narrativo, a fazer apelo à integridade do ser pessoa, passamos a dar a primazia a uma racionalidade de tipo eficientista, em que o examinando é apenas o leitor do momento, que pode pôr de lado o esforço de três anos e desmerecer todos os conhecimentos que lhe foram transmitidos pelos docentes.

A esta degenerescência nos conduzem os exames nacionais, enquanto instrumento aferidor de competências para aceder ao ensino superior. E tudo isto é triste, sem ser fado!