O TRIUNFO DA BUROCRACIA
Poder-se-ia supor que o ministério da Educação seria o maior obstáculo à simplificação administrativa, mas o absurdo é que o problema vem de dentro dos estabelecimentos de ensino. Se chega às escolas alguma orientação a solicitar que se faça mais um documento, os professores multiplicam-no por dez novos papéis e apressam-se em criar equipas de trabalho e a marcar reuniões.
O Homo Professus, deslumbrou-se de tal modo com a possibilidade que a tecnologia lhe conferiu de um savoir faire de documentos apinocados com umas cores e bonequinhos com grafismo onde facilmente tudo fica arrumadinho e que, independentemente do conteúdo, fazem-no acreditar que a resma de grelhas, fichas e gráficos, são o último grito do perfecionismo, transformando as casas da educação num antro de inutilidades.
Motivo pelo qual, após anos de queixas da classe pelo excesso de burocracia, custa-me a acreditar que os professores aproveitem da melhor maneira o repto que o ministério lançou às escolas para que estas possam proceder à simplificação de procedimentos.
Será que todos os professores estão assim tão interessados em aproveitar esta oportunidade de reduzir o excessivo tempo dedicado à escola?
Ontem, cá em casa, um dia que poderia ter sido suave, foi um caos. A minha esposa teve reuniões às 9h, às 14h e às 17h. Como trabalha a 32km de casa, para aproveitar o tempo, depois de reunir de manhã, veio a casa e regressou à tarde à escola, completando 4 viagens num dia, acumulando, ainda, horas de espera entre reuniões (situação mais perniciosa para quem vive ainda mais longe do que ela). Desgaste, despesa e sujeição à perigosidade nas estradas. Atendendo ao recente decreto ministerial sobre “Medidas de modernização e simplificação administrativa”, que na alínea b) sugere a realização de reuniões online, esta situação seria facilmente evitável, houvesse bom senso nas escolas.
Infelizmente, porém, muitos dos colegas que trabalham perto do seu domicílio, são indiferentes a esta e outras realidades, pois não lhes causa qualquer diferença que haja reuniões presenciais e intervaladas por várias horas, porque aproveitam sempre bem o seu tempo com assuntos de ordem pessoal.
Ainda que exijamos compreensão do MEC para com os problemas dos professores, apelemos à união na luta pelo interesse comum, não deixamos de ser os primeiros a demonstrar uma enorme falta de solidariedade dentro da classe.
No entanto, todo este pântano de papelório e de procedimentos redundantes e desnecessários, tem uma causa. Um dos maiores flagelos nas nossas escolas, são os professores sem vida pessoal que tornam a vida profissional na sua própria vida e arrastam todos os outros consigo neste abismo de burocracia.
Professores que se apresentam nas escolas antes de 1 de setembro, interrompem as suas férias ou os seus atestados médicos, para voltarem às escolas, alegando estarem fartos de estar em casa. Pessoas para quem o primeiro dia de férias é um desgosto e o regresso à escola um momento orgástico. Docentes que, mesmo durante as férias no verão, continuam a ir à escola para se encontrarem. Colegas que sofreram muito mais com a pandemia do que qualquer pai ou aluno, porque tiveram de ficar em casa e não puderam ir para a escola.
Em rigor, esta é uma profissão repleta de pessoas solitárias, mal-amadas, mal casadas e solteiras que tudo fazem para não irem para casa. Depois, inventam projetos que arrastam todos os outros; criam documentos, que multiplicam por mil; engendram reuniões e grupos de trabalho e tudo o que se possa imaginar para se manterem na escola a si e aos outros o máximo de tempo possível.
Pessoas cujo mundo se reduziu apenas à escola, que se tornaram incapazes de ter uma vida privada e outros interesses, esvaziando por completo as suas vidas pessoais, contagiando com essa postura todos os que querem regressar a casa o quanto antes e tratar das suas vidas pessoais. E o pior é que ainda invadem o tempo em família desses colegas, com trabalho que geram, com emails e telefonemas, muitos deles, desnecessários. Figuras que fazem as reuniões arrastarem-se ad eternum, ou que, após estas terminarem, ficam a fazer sala sem vontade de regressarem a casa.
A perversa avaliação de desempenho com as evidências, as quotas e vagas, a bajulação, a cunha e o protagonismo, ajudam a confecionar este caldeirão de inutilidades, de burocracia e de gasto excessivo de tempo na e com a escola, onde todos nos encontramos a ser cozinhados em lume brando.
Não tenho a menor dúvida de que há professores que iriam trabalhar para a escola, mesmo que não lhes pagassem salário ou gratificassem horas extraordinárias. São os habituais voluntários para todas as visitas de estudo e atividades que sejam feitas fora do horário laboral. São também os principais responsáveis pelo nosso trabalho em excesso e pelo facto de sermos das poucas profissões em que o trabalho é feito fora do período laboral e as horas extraordinárias não são remuneradas. Sinto alguma pena do vazio das suas vidas, mas já não consigo ter o mesmo sentimento quando a cura que encontram para essa solidão implica prejudicar a vida dos outros.
Com isto não quero dizer, de modo algum, não ser normal e saudável estabelecer laços, sociabilizar e criar um bom ambiente no local de trabalho. O que já não é aceitável, é fazer do local de trabalho a sua casa e da profissão, a sua vida querendo que todos os outros se comportem do mesmo modo, deixando a ideia subliminar de que, quem não o fizer, é um incompetente.
E sabemos perfeitamente que, dento das escolas, basta que haja um grupinho que adore o «compliquês» que lhes dê o tal livre acesso a estarem dia e noite na escola, para implicar que todos os colegas fiquem sujeitos a um recrutamento forçado para lhes fazerem companhia e levarem excesso de trabalho para casa. E o projeto MAIA é um dos casos mais flagrantes disto. É tudo menos simples e funcional, acolhe muito pouca simpatia por parte da classe docente, mas responde na perfeição ao gosto de quem nele encontra motivo para poder trocar a casa pela escola, fundamentado em formações, reuniões e documentação interminável que lhes dará acesso ilimitado a presença na escola para esta e para a próxima reencarnação.
Advogam que os pais são os maiores interessados em manter o «armazém» de alunos de portas abertas, mas acabam por ser os mais interessados em que isso aconteça, porque não têm vida do lado de fora dos portões da escola (constituindo muitos dos que não fizeram uma única greve ou manifestação para mudar o estado das coisas na profissão).
Os professores já trabalham em demasia e mereciam mais tempo para preparar as suas aulas, atualizarem os seus conhecimentos, para lazer, para descansar e, sobretudo, para estarem com as suas famílias.
Todavia, estou certo que, depressa se irão criar equipas para estudar a proposta de desburocratização e, depois, grupos para avaliar o trabalho realizado por essas equipas e novos grupos de trabalho para avaliarem o resultado dessa simplificação, promovendo inquéritos realizados por observatórios de qualidade e de satisfação e, sem darmos por isso, voltámos a complicar e a arranjar mais burocracia.
Como nunca deixará de me surpreender o elevado número de indivíduos desocupados que, pensando unicamente nos seus próprios interesses, causam prejuízo a terceiros, suponho que a simplificação do novelo em que transformámos a nossa vida profissional não irá ser tão fácil como se poderia pensar. Na verdade, este é um sítio altamente destruidor da saúde mental do mais saudável dos seres humanos e, o pior, é que nós estamos lá.
Carlos Santos
Mas só descobriram agora que as escolas adoram papelinhos e reuniões? Não culpem o ministério nem o MAIA. Embora convenhamos que o texto é insultuoso para muitos professores
Inventam-se estruturas nas escolas (que nem existem na Lei), isto é, mais reuniões, mais burocracia, mais papelada…
Enfim.
Ilustres Colegas e/ou Direções que se estão a borrifar para a exaustão, etc. dos demais. Uns não têm tempo, outros têm tempo a mais.
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