O pesadelo mínimo
NOTA INTRODUTÓRIA-escrevo, pela noite, num telemóvel, na viagem em autocarro de regresso da manifestação de hoje, em Lisboa. Dei comigo a pensar que, este ano, passam 60 anos sobre a também grande manifestação de Washington pela defesa de direitos civis, em que Martin Luther King proferiu o célebre discurso “I have a dream”.
Eu tive um pesadelo! O pesadelo que, um dia, o ensino público no meu país se tinha degradado a tal ponto que os professores saíram à rua para protestar e alertar a consciência dos cidadãos! Tive um pesadelo em que os docentes, fartos de ministrar currículos mínimos, em condições mínimas, auferindo minivencimentos, manifestaram-se e fizeram greve. O ministro, de minúscula visão, minimizou o caso. Fez umas miniconcessões, a ver se dividia os queixosos e minimizava o ruído, enquanto minava a opinião pública, sem a mínima vergonha nem respeito pelos direitos de um estado democrático, mandando decretar serviços mínimos.
Tive o pesadelo que o Poder, sem ter a mínima noção das consequências nem sentido de estado, continuou a esbanjar recursos reduzindo o ensino a uma versão minimalista. Quem tinha rendimentos de várias vezes o salário mínimo, não teve a mínima dúvida em frequentar colégios privados, que produziam as elites sociais; os restantes foram-se tornando uma espécie de minicidadãos, com ambição mínima, rendimentos mínimos, limitados na sua capacidade de contestar, ainda que minimamente, este status quo instalado que, desta forma, se foi autoalimentando.
Eu tive o pesadelo de que esta miniescola continuou, como antes, atulhada em processos sem o mínimo interesse, desprovida de um mínimo de autoridade e respeitabilidade, não sendo a sua função social tida como minimamente relevante pela comunidade, para além de tomar conta dos mais novos enquanto os adultos labutavam.
Eu tive o pesadelo que o sistema de ensino público colapsou, porque uns não fizeram o mínimo esforço por entender os alertas dos manifestantes e os outros não tiveram mínima vontade de o manter.
Eu tive o pesadelo que no meu país, além do sistema educativo público, seguiu-se o colapso do serviço de saúde, da justiça, terminando no próprio regime político. Porque se permitiu, sem mínima oposição, que demasiada gente sem o mínimo de escrúpulos, bom senso ou preparação ascendesse a lugares de decisão. Porque não houve um mínimo de contestação perante a degradação, uns por comodismo, outros por interesse, outros ainda por acharem que alguém o faria por eles e que isso bastaria.
Eu tive o pesadelo de perceber que, depois, todos lamentaram mas era tarde demais! Que todos perceberam que não pode haver mínima tolerância à corrupção, ao desvario, ao abuso, à injustiça, ao desrespeito, à exclusão…porque, se tiverem a mínima hipótese, hão-de gangrenar todo o tecido social.
Eu tive o pesadelo de ver cidadãos sem os mínimos direitos porque, quando os tiveram, acharam que eram eternos e não lutaram, no mínimo, para os manter.
Eu tive o pesadelo que nunca quis ter. Mas acordei. E não voltarei a dormir enquanto souber que ainda há uma hipótese, ainda que mínima, de o voltar a ter!