Costuma dizer-se que as crises desvendam o que de pior e melhor existe em cada pessoa com as dinâmicas de grupo que esse desabrochar possa causar. O turbilhão que se foi instalando em Portugal à medida do crescimento da pandemia, tem funcionado como uma onda sísmica que tem atacado vários setores da sociedade, embora nem todos com a mesma brutalidade, e evidenciado o perfil dos seus protagonistas. Uma das áreas mais fustigada é a da Educação. E ao longo destas semanas que já parecem anos, vários actores da grande narrativa educativa têm mostrado o que de pior e melhor conseguem fazer e ser.
Comecemos pelo pior: o Ministério da Educação tem salientado o seu habitual desnorte, próprio de quem não sabe muito bem como funciona o ensino em Portugal, os recursos das escolas, dos alunos, dos professores (bom, desses nem importa falar), como é o perfil comportamental de muitos (demasiados) alunos, quer do básico quer do secundário contraindicado a aulas no formato videoconferência. O Ministério da Educação não sabe, ou finge não saber, que as múltiplas faces da antipatia visceral que muitos encarregados de educação dedicam aos professores (e que o ME tem alimentado) passaram a ter, com as aulas síncronas através das plataformas digitais, um salvo conduto há muito desejado para invadir a sala de aula exercendo um papel de capatazes de vernáculo pouco recomendável. O Ministério da Educação não sabe nem quer saber, mas finge que sabe atirando com umas frases, uns lugares comuns, um repertório de “faz de conta”, o que é a Escola em Portugal.
A ausência de um Projecto Educativo que vise de facto competências holísticas e a construção de seres éticos e comprometidos com o mundo, tem vindo a evidenciar-se com este acesso de crise psicótica que tem elevado o mundo kafkiano em que as escolas vivem a um patamar e dimensão inimaginável.
Mas o Ministério da Educação tem contado com a ajuda preciosa de um outro espectro de actores medíocres. Muitos directores de agrupamentos (não todos felizmente) (…) mandam os que consideram como seus subordinados multiplicar procedimentos e recursos digitais, tabelas de controlo e tarefas aos alunos, contactos permanentes com os diretores de turma, com os encarregados de educação, com os alunos. Aos professores, que raramente consideram como colegas, exigem total disponibilidade para se colarem ao Zoom (campo ideal para se evidenciarem os comportamentos bizarros), manterem atenção a todos os canais comunicantes (só faltam os sinais de fumo), marcarem presença nas reuniões (muitas, claro) e responderem a todas as solicitações, surjam elas quando surgirem.
Quanto aos alunos, uns desesperam por não conseguirem dar conta de tanta plataforma e tanta tarefa, ao mesmo tempo que os pais roem o sabugo dos dedos no desespero de quem precisa de trabalhar no único computador da casa. Outros, entretêm-se como é seu hábito nas salas de aula, mas nunca se tornou público como agora, boicotando o trabalho, desrespeitando professores e colegas, provocando, humilhando.
E temos ainda os tais pais que desenvolveram asco à escola e que veem no professor o alvo ideal para descarregarem tudo o que gostariam de fazer no chefe que os humilha, ou nos filhos que os ofendem. (…)
Enfim, no meio deste universo demencial, o lado melhor da crise surgem a par de muitos estudantes empenhados e pais comprometidos com as suas responsabilidades, os professores a confirmarem a sua faceta altruísta colocando, uma vez mais, a missão docente como prioridade. Mas, será que o devem fazer a qualquer custo?
Qual deverá ser o papel dos professores neste contexto? Ceder a tudo? Trabalhar 70 horas por semana? Colocar o seu computador pessoal e a net que pagam ao serviço de um chorrilho de disparates? Devem esquecer políticas de privacidade, salvaguarda de imagem e de segurança digital? Devem esquecer que a semana de trabalho acaba à sexta-feira? Devem ser eles a suspender o que o Estatuto da Carreira Docente consagra e que tanta luta tem representado para não ser mais desvirtuado?
Sim, a situação é excepcional, mas há limites. Os professores estão a correr sérios riscos, o risco de que as excepções têm se tornem rotina, o risco que representa o acatamento cego de ordens emanadas das direcções dos agrupamentos que excedem, antecipam e interpretam mal o que já de muito errado é disparado do Ministério da Educação.
Este deve ser um tempo especial não apenas pela obrigatoriedade de quarentena, mas porque esta oferece uma possibilidade ampla de experiências que de outra forma não teríamos. Sejamos claros: a casa não é nem deve ser prioritariamente um espaço escolar, mas sim um espaço com rotinas inerentes às dinâmicas familiares e onde haja lugar à multiplicidade de aprendizagens e mecanismos de desenvolvimento de competências que não passam pela resolução de fichas. A destreza mental, habilidade motora, criatividade, autonomia, responsabilidade são em grande parte adquiridas e otimizadas num contexto educativo primário, ou seja, dentro da família. Ler, ver bons filmes e falar-se sobre eles, escrever, pintar, desenhar, criar debates, construir um jornal de família, cozinhar, inventar… tanta coisa a fazer. Fichas e aulas? Com sensatez e havendo possibilidade para tal. Caso contrário, ninguém morre por não as realizar e podemos até ganhar muito mais se soubermos aproveitar o tempo. Alguns pais precisam de descobrir os filhos que têm. Façam-no agora.
E descobrir o tempo e o lento pulsar da vida, falar uns com os outros e reaprender a respirar é bem mais importante, num contexto familiar, que qualquer ficha que se possa fazer.
São os professores que devem demonstrar claramente isto dizendo: Não! Basta! Principalmente quando o que lhes é exigido toca as raias da insensatez e do pesadelo. Porque dizer Não é, muitas vezes, um acto de coragem, um contributo educativo e a garantia de que não se está a comprometer o futuro.
Texto de Ana Paula Timóteo, professora
Fonte: Esquerda.Net