Vejo uma criança de pouco mais de dois anos, muito bem vestida, sozinha, a caminhar com os esboços tremidos de passos que a idade determina. Já sabe andar, mas digamos: ainda não é uma especialista. Provavelmente ainda não conseguirá sequer correr.
Olho para todos os lados. Penso: uma criança abandonada, como é possível? Levanto e rodo a cabeça para todos os lados. Vejo uma mulher mais à frente, uns quatro metros à frente da criança. Percebo rapidamente, lógico, é a mãe.
A mãe está ao telemóvel, desce umas escadas de rua; o filho de dois anos atrás dela, isso mesmo, atrás, e desce, depois dela, meio a rastejar, o primeiro degrau.
A mãe, dois metros à frente da criança, está a olhar para o telemóvel, completamente ausente.
1.
Restaurante. Mesa circular. Mãe e pai, cada um fixado — vidrado, obcecado — no seu telemóvel. Duas crianças, uma talvez com seis anos e outra com sete, ainda sem telemóvel, estão ao lado dos pais, abandonados. A miúda, uma e outra vez puxa o casaco da mãe que hipnotizada por algo fascinante no ecrã talvez nem se aperceba daqueles movimentos mínimos de mão ainda mínima. O pai, então, está completamente noutra, o polegar em atividade rolante sobre o ecrã. Observo. Há tempo para observar porque isto dura longos minutos, longos, enquanto não vem a comida (a comida terá depois toda a atenção dos pais). O miúdo, um dos filhos, já deve ter desistido há muito; a miúda não — faz umas tentativas de chamar a atenção, nada. Pai e mãe totalmente ausentes em parte incerta.
Tentação de telefonar à segurança social a dizer que duas crianças estão sozinhas e abandonadas num restaurante. Dois órfãos com pais anatomicamente presentes e sentados cinco centímetros ao lado.
2.
Numa conversa, registada por escrito, Goethe disse: “A Presença é a única Deusa que eu adoro.”
Passaram quase dois séculos.
Em 2023, a presença é cada vez mais difícil, estar ausente é cada vez mais fácil.
E não se trata de estar ausente por viagem, trabalho ou migração forçada. Não se trata de estar ausente no espaço, não se trata de não ter pés e restante fisiologia bem pousados ao lado de alguém.
Trata-se da ausência da atenção, da atenção que está desviada para outro lado, da atenção que saltita de imagem para informação, de informação para imagem, como se a atenção individual estivesse a atravessar um rio fundo e cada imagem ou informação que vem do telemóvel fosse a pedra onde o pé da atenção pousa apenas por uns segundos, apenas para ganhar balanço para ir para outra pedra. A atenção humana parece estar a ser perseguida. Parece ter medo de pousar o pé mais do que um microssegundo num assunto ou pessoa, como se qualquer profundidade fosse perigosa.
Desde que exigiu também a presença dos nossos olhos, e não somente dos ouvidos, o telemóvel suga a atenção do corpo humano de uma maneira quase exclusiva. Já o sabemos há muito, o telemóvel é uma máquina de produzir ausência do local onde o nosso corpo material está.
Aquilo que no início nos fascinava: a possibilidade de estar aqui e noutro lado ao mesmo tempo, agora angustia: nunca estamos verdadeiramente onde estamos.
3.
Há inúmeras exceções, felizmente, claro. Mas, muitas crianças estão a crescer mendigando pela atenção dos pais que fisicamente estão presentes, mas caídos na vertigem do telemóvel.
4.
Toda a gente já viu a ansiedade de uma criança que, em dia de festa da escola, vai cantar e os pais ainda não chegaram. A criança vai cantar para os pais verem, acima de tudo — o resto da população mundial pouco importa. A infância tem, muitas vezes, dois espectadores. Se é sortuda tem mais; se é trágica tem menos. Enquanto os pais não chegam, a criança está ansiosa, nervosa, irritada, desequilibrada.
5.
O modo como muitos dos humanos estão virados para o telemóvel, canalizando para o ecrã todas as suas possibilidades corporais e toda a sua atividade intelectual, é semelhante à adoração obsessiva por um deus. Como se o ecrã do telemóvel fosse um pequeno altar portátil que exige uma espécie de oração quase contínua — nunca na História existiu religião mais exigente de atenção por parte do devoto.
Talvez seja, então, o momento de mudar de Deuses, e do deus-ecrã se passar para a velha Deusa que Goethe adorava, a Deusa da Presença.
6.
Nos transportes públicos, nos cafés, nas caminhadas, a mendicidade das crianças pela atenção dos pais está espalhada por todos os locais, momentos, classes sociais, profissões.
Um exército de mendigos que pedem a mais preciosa moeda, a moeda que jamais poderá ser recuperada: a atenção dos pais na infância.
Como serão estas crianças quando chegarem a adultos? Ainda não sabemos. Mas daqui a 20 anos receberemos notícias disso.
Não vão ser boas notícias.