Início Educação O antes e depois dos telemóveis no recreio

O antes e depois dos telemóveis no recreio

28
0

Por esta altura, muitos alunos da escola já almoçaram e estão no recreio. Alguns sentam-se em bancos ou nos muros, outros permanecem de pé em pequenos grupos. Conversam, gesticulam, gastam o tempo em movimentos inconsequentes. Há quem jogue às cartas. No campo de futebol decorre um jogo e nas áreas circundantes vários alunos trocam a bola entre si. As mesas de pingue-pongue também estão ocupadas.

Noutra escola, a cerca de nove quilómetros, o ambiente é muito diferente. Concentrados, em dia de chuva, num dos espaços comuns interiores da escola — um corredor largo que liga as salas de aula aos vários serviços —, quase todos os alunos mais novos, entre os 10 e os 12 anos, estão de telemóvel na mão. Trocam mensagens, veem ví­deos, mostram fotografias. Mas a maioria está focada numa única tarefa: jogar. Fazem-no individualmente ou em pequenos grupos, recolhidos a um canto ou sentados de costas uns para os outros no banco de azulejos que se estende por todo o comprimento do espaço. Trocam poucas palavras entre si, mas muitos gritos de frustração, que deixam adivinhar um revés no jogo. Mais do que o recreio de uma escola, parece um torneio de jogos ao vivo. Findo o intervalo, muitos regressam às aulas ainda de olhos cravados nos ecrãs, alheios a tudo, e só no momento exato em que entram nas salas é que finalmente os guardam.

A diferença de comportamentos nas duas escolas tem uma explicação: na Escola Básica e Secundária Gil Vicente, em Lisboa, a primeira aqui descrita, os smartphones foram proibidos. A medida, implementada no ano letivo passado, aplica-se até ao 9º ano. Os alunos do secundário têm sido alertados para usar o telemóvel com moderação; os professores não devem solicitar o seu uso nas aulas e os pais são aconselhados a não os comprar. “O smartphone não consta da lista de material escolar, portanto não é necessário”, explica Sandra Rosa, coordenadora de projetos. Inicialmente, os pais estavam preocupados com o contacto com os filhos, mas a questão foi resolvida. “Recomendámos telemóveis simples, de teclas, e muitos alunos já os usam. Além disso, podem falar com os pais na receção, gratuitamente, ou à saída da escola.”

Desde a proibição, há mais barulho, atividade física e convívio. “Antes, havia sempre telemóveis à mesa e muitos alunos almoçavam sozinhos a olhar para os ecrãs.” Problemas como o cyberbullying e a captação indevida de imagens também diminuíram. “Tínhamos muitos casos de alunos a criar contas falsas nas redes sociais para divulgar imagens sem autorização e até a simular agressões para partilhar online. Também tínhamos alunos de 10 anos a ver pornografia nos intervalos. Tudo isso terminou.”

O Ministério da Educação recomendou recentemente que as escolas proíbam o uso de telemóveis no 1º e 2º ciclos e implementem restrições no 3º ciclo. Em 16 agrupamentos do país já é proi­bido, segundo dados do movimento Menos Ecrãs, Mais Vida, atualizados até abril último. Desde a recomendação, pelo menos mais um agrupamento, em Matosinhos, avançou para a proibição. Na Escola Básica Eugénio dos Santos, em Lisboa, foi sugerido aos alunos do 2º ciclo que não tragam telemóveis para a escola. Ainda é cedo, contudo, para avaliar o impacto da medida, consideram as associações de diretores ouvidas pelo Expresso.

A proibição dos telemóveis na Gil Vicente foi implementada com a concordância dos professores, auxiliares e encarregados de educação. A maior dificuldade tem sido mesmo convencer os alunos. À medida que percorremos os espaços da escola, acompanhados por Sandra Rosa e pela subdiretora Ana Catarina Pires, apercebemo-nos de vários alunos a esconder os telemóveis nos bolsos ou nas mochilas. Dois alunos do 9º ano criticam a medida, alegando que o telemóvel não interfere com a socialização. Também se queixam do controlo apertado. “Se não cumprirmos, podemos ser suspensos.” Outro grupo, mais à frente, tem uma opi­nião menos fechada. Não lhes agrada a “proibição total”, mas reconhecem que “a intenção é boa”. “Jogamos mais à bola, à apanhada, às escondidas e conversamos mais”, diz um deles, apontando para um colega: “Está a ver aquele rapaz? Antes nunca jogava à bola connosco, estava sempre a ouvir música no telemóvel, mas agora joga.”

A medida é monitorizada por professores e funcionários. A primeira infração resulta num aviso, mas rein­cidências podem levar a suspensões até três dias. No ano passado, entre 10 e 15 alunos foram suspensos, indica a subdiretora Ana Catarina Pires. Este controlo requer atenção e disponibilidade por parte dos funcionários, o que em algumas escolas pode ser mais difícil de garantir.

Na Escola Básica e Secundária Rainha D. Leonor de Lencastre, em Sintra, essa é umas das razões pelas quais ainda não se avançou para a proibição, mantendo-se os alunos agarrados aos jogos nos intervalos. “Falta-nos pessoal, a escola está cheia e os espaços desportivos são limitados. Sem alternativas ao telemóvel, os alunos ficam menos distraídos, o que pode resultar em problemas de comportamento”, explica Paulo Campos, diretor do agrupamento.

Ainda assim, a direção está preocupada com o uso “massivo” de telemóveis nas escolas. “Nos últimos quatro ou cinco anos o uso excessivo tem-se tornado muito evidente. Já nem me lembro da última vez que partiram um vidro. Os alunos saem da escola com a roupa impecável, exatamente como chegaram, porque passam o tempo quie­tos a jogar no telemóvel. O uso precoce de telemóveis é prejudicial para a saúde física e mental. Temos visto um aumento drástico de casos de ansiedade e depressão.”

Foram já tomadas medidas, como o Dia sem Telemóvel — uma iniciativa mensal para sensibilizar os alunos —, e a direção quer proibir o uso de telemóveis nos 2º e 3º ciclos no próximo ano letivo. “Vamos fazê-lo de forma gradual, porque temos de criar novas atividades. Além disso, há outras prioridades a ter em conta, porque estamos numa escola inclusiva, que acolhe alunos com necessidades especiais e de várias origens e culturas. Para algumas escolas será mais fácil proibir do que para outras”, reconhece Paulo Campos.

Expresso