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“Não queremos ser a geração da pandemia”

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O menino de 6 anos queria brincar, mas começou a chorar quando o amigo lhe emprestou o brinquedo. O episódio passado num grupo de terapia infantil do Hospital S. João, no Porto, é relatado pela pedopsiquiatra Alda Mira Coelho: “Disse-me que a mãe não o deixava tocar em brinquedos que não fossem dele”, isto apesar de o objeto ter sido desinfetado. As crianças e jovens são menos afetados pelo vírus, mas mais frágeis face às consequências sociais da covid. A maior pandemia do século tirou-os da escola durante meses e confinou-os em casa sem saberem quando a vida vai regressar ao normal. Hoje, o mundo ensina-lhes que brincar e conviver pode ser perigoso. O impacto destas mudanças é tal que, um pouco por todo o mundo, começaram a ser designados como “geração C”, de coronavírus.

“A enorme disrupção na educação dos jovens [devido à pandemia] é um risco para o seu bem-estar a curto prazo, e pode afetá-los toda a vida”, frisa um artigo publicado no final de junho na revista científica “The Lancet”, precisamente com o título “Geração coronavírus?”

Em Portugal, há cerca de três milhões de pessoas com idades entre os 0 e os 30 anos: todos cabem no conceito de “geração C”. “A indefinição é total, por isso a preocupação com uma geração coronavírus é legítima. Ninguém sabe quando isto vai terminar”, diz a pedopsiquiatra Lurdes Candeias.

“É crucial a família explicar os perigos da pandemia de forma tranquilizadora. Quando essa ansiedade não é filtrada, as crianças ficam com medo. No início, muitos miúdos perguntavam-me se podiam morrer [com a doença]”, enfatiza Alda Mira Coelho.

“As crianças precisam do contacto”, e o medo de tocar nos outros pode “minar essa expressão afetiva”, diz Alda Mira Coelho

A covid-19 chocou com a “necessidade de movimento e de convívio com os amigos”, natural dos mais novos, e teme-se que essa “perturbação da vida normal” deixe marcas no futuro.

Apesar de considerar que é “muito cedo” para falar numa “geração C”, Augusto Carreira, também pedopsiquiatra, tem uma certeza: o confinamento agravou a saúde mental dos jovens em idade escolar, sobretudo aqueles “já com contextos familiares disfuncionais”. “Tive um caso de uma criança de 11 anos com uma relação difícil com o pai. Ele ficou desempregado e os dois passaram a estar em contacto permanente. O conflito agudizou-se ao ponto de o rapaz ensaiar uma fuga de casa”, lembra.

Lurdes Candeias dá outro exemplo: “Numa consulta, um menino perguntou-me: ‘Acha que vou ficar cego? Já não conseguia estar o dia todo a ter aulas num ecrã.’” Apesar de ter sido uma “mais-valia gigante”, Alda Mira Coelho teme que o uso das tecnologias traga “um futuro superdesinfetado mas também supervirtual”. A investigadora lembra que “as crianças mais pequenas necessitam do contacto físico para desenvolver os afetos”, e o medo de tocar vai “minar essa expressão afetiva”.

Alda Mira Coelho tem sentido que os mais pequenos estão “sedentos de convívio e brincadeira”, e por isso “será complicado cumprirem as regras” sanitárias em vigor. Já os jovens a partir dos 10, 12 anos estão mais conscientes do perigo, mas também do impacto social e económico da pandemia — e isso traz consequências, diz. “Os adolescentes não sabem que sonhos podem ter. Estão a crescer com uma sensação permanente de incerteza”, explica a pedopsiquiatra, alertando que esse impacto já é visível nas faixas etárias seguintes.

Os dados parecem confirmá-lo. Em abril e maio, o Conselho Nacional de Juventude (CNJ) fez um inquérito a cerca de dois mil jovens entre os 15 e os 30 anos e cerca de 50% indicaram um “aumento dos níveis de ansiedade e dificuldade na gestão emocional da crise”, assim como um aumento dos hábitos de risco — sedentarismo, mau sono, consumo de substâncias ou vício em jogos virtuais. Ao mesmo tempo, um estudo da Organização Internacio­nal do Trabalho (OIT) concluiu que a pandemia teve um “efeito devastador” na educação, trabalho e saúde mental da juventude: 65% dos jovens entre 18 e 34 anos reportaram ter aprendido menos nas aulas à distância, e 50% diziam sofrer de ansiedade e depressão na altura do inquérito.

“Eu só queria sair daqui.” Manuel Rocha, 25 anos, ainda não conseguiu tirar Londres da cabeça. Lisa Vieira, a namorada de 23, explica: “Começámos a pensar ir para lá estudar e trabalhar em 2017, e aos poucos a curiosidade tornou-se num plano.” Depois de avanços e recuos, este casal de Guimarães começou a poupar dinheiro em novembro e a planear tudo ao pormenor. Manuel estava licenciado e a trabalhar, Lisa iria concluir o mestrado e candidatar-se a uma pós-graduação. “A ideia era criar currículo lá fora e depois voltar”, diz. Voariam em julho: tinham dinheiro, casa e entrevistas de trabalho marcadas. E do nada, a pandemia. “Li um artigo que dizia que o Governo [britânico] estava a trabalhar num cenário otimista de 20 mil mortes. O perigo dos contágios assustou-nos”, assume Lisa.

MEDO DE SAIR À RUA

“Durante semanas estivemos completamente paranoicos com medo de sair à rua”, conta. “Por nós e pela nossa família. Não podia correr o risco de infetar os meus pais”, acrescenta Manuel. O tempo passou, a situação sanitária melhorou, o desconfinamento aconteceu. “Agora estamos a stressar outra vez com o aumento dos casos. Como se estivesse tudo a voltar ao início”, reflete Lisa.

No inquérito, o Conselho Nacional da Juventude perguntou também quais eram as principais preocupações dos jovens dali a seis meses, e quase 46% destacou a possibilidade de uma segunda vaga. “Os níveis de ansiedade e depressão no isolamento foram atenuados no verão, mas setembro pode trazer esses sentimentos negativos de volta”, diz Vítor Ferreira, sociólogo especializado em juventude.

Para Isabel Menezes, investigadora na área da psicologia juvenil, já se pode dizer que “as consequências ao nível da saúde mental serão de alguma intensidade”. Lisa já começou a sentir isso e prevê um futuro de “menos amizades.” “Não conheces, não confias, não te aproximas. Perdemos a vontade social.”

Pedro Russo, 23 anos, tem vários amigos “que começaram a ir ao psicólogo”. Há cinco que é ator profissional: quando a covid-19 apareceu, tinha uma peça prestes a sair em digressão, mas “em poucos dias fechou tudo”. Sem apoios da segurança social, esperou por uma oportunidade num episódio-piloto de uma série juvenil. “Primeiro ia ficar, depois já não, depois talvez, mas diminuíram-me o cachet e queriam que pagasse um teste. O processo foi incerto e senti que se estavam a aproveitar de nós por sermos malta nova.”

O futuro será feito de “menos amizades”, acredita Lisa, de 23 anos. “Não conheces, não confias, não te aproximas. Perdemos à vontade social”

Entretanto, Pedro passou a viver com a mãe em Corroios, e está à procura de trabalho em qualquer área — já fez um pouco de tudo, está habituado a ter de pagar as contas sozinho. Tem projetos para o futuro, mas não sabe se vai ter oportunidade de concretizá-los.

Isabel Menezes lembra que “a transição para o emprego é crucial: todos os que estavam a fazer estágios viram as suas oportunidades alteradas ou cortadas completamente”. E isso irá atrasar ainda mais uma “geração qualificada, mas precária e adiada nos seus projetos de independência”, lamenta o sociólogo Vítor Ferreira.

Rita Saias, presidente do CNJ, sublinha que o país tem de evitar o nascimento de uma “geração C” no mercado de trabalho: “Receamos que venham a existir diplomados da covid discriminados pelas empresas: pessoas que devido à pandemia não conseguiram acabar os estudos a tempo, que tenham sido impedidas de estagiar, e por isso não tenham adquirido todas as competências que desejavam ter”, explica. Lembra a mensagem da OCDE para Portugal: “É necessário aumentar para o dobro o investimento público em ciência, tecnologia e ensino superior. Isso será muito importante na retoma, até para os jovens que não estudam nem trabalham”, diz.

“TUDO É INCERTO NESTE MOMENTO”

Nos últimos meses, o CNJ tem reunido com responsáveis políticos e apresentado propostas, porque “é crucial atuar já para garantir o futuro”. “O aumento da dívida pública e a crise financeira que se seguirá” foi uma preocupação apontada por 35,4% dos inquiridos pelo CNJ — dados que mostram uma geração que “não está desligada da vida política e social do país”, sublinha Rita Saias, frisando que “a juventude tem de ter um papel preponderante na definição dos caminhos que vamos seguir” e tem de ser ouvida, sobretudo nas áreas que mais lhes dizem respeito: educação, emprego, habitação, natalidade.

Pedro vai ficar, Mané e Lisa querem sair, mas estão num “limbo”. “Tudo é incerto neste momento. Ninguém sabe o que dizer, ninguém sabe como vai ser”, atira Lisa. “A única certeza é que quero continuar a investir na minha formação, mesmo que o futuro vá ser ainda mais difícil.” Ou seja: o objetivo Londres ainda está vivo e não será a covid-19 a eliminá-lo. “Não queremos ser a geração da pandemia.”