Fiquei a saber pela comunicação social que o hospital onde trabalho é de referência para a crise sanitária Covid-19. Nesse dia, na minha enfermaria, entre outras coisas, faltavam dispositivos básicos de proteção entre camas solicitados há meses. Os profissionais não sabem o que fazer. Fiquei a saber que há 34 quartos de isolamento onde ficarão os casos suspeitos e os infetados, mas nesse dia existiam na realidade seis quartos de isolamento em pressão negativa, cinco ocupados por doentes sem indicação por não haver vaga na enfermaria. Em todos os internamentos de adultos, havia 14 quartos de uma só cama, onde se pode fazer isolamento ‘assim-assim’, e 11 estavam ocupados. No mesmo dia desta ‘propaganda’, tive de recusar duas transferências dos cuidados intensivos por não ter cama onde colocar os doentes.” O desabafo é feito por um pneumologista e faz eco do sentimento de muitos profissionais dos maiores hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) a quem caberá cuidar dos infetados.
O especialista questiona ainda: “Como é possível ser hospital de referência por decreto e sem qualquer reforço efetivo na capacidade técnica e humana, que se encontra nos limites para a atividade diária?” Sem resposta, faz um lamento. “A quem tem de lidar cara a cara com o problema, resta a velha competência do desenrasca, acrescida das guidelines da sorte e do ‘Deus nos acuda’.” Em todos os sectores da Saúde o alerta é o mesmo: o plano para travar o vírus tem brechas. É preciso reforçar tudo — informação, liderança, coordenação, autonomia de gestão, verbas, recursos humanos, instalações e materiais — e rápido. O Covid-19 já provou ser veloz.
A Direção-Geral da Saúde (DGS) garante que o SNS tem 300 quartos com pressão negativa para a fase de contenção, em que ainda estamos, e duas mil camas para a fase em que o vírus se instalar na comunidade, mas há um senão: estão muitas ocupadas por doentes com outras infeções que também necessitam de resguardo. “Confundiu-se a disponibilidade teórica com a capacidade prática”, diz o pneumologista e consultor da DGS Filipe Froes.
“A capacidade atual do SNS para isolamento é muito escassa. Ainda por estes dias tivemos de transferir um doente com tuberculose porque não tínhamos como mantê-lo isolado”, adianta um responsável de um hospital da Grande Lisboa.
A falta de camas não poupa até as maiores unidades do país, como os hospitais universitários. No São João, na primeira linha de resposta à epidemia no Porto, bastaram dois doentes internados e alguns sob suspeita para a diretora-geral da Saúde admitir que o hospital tinha esgotado a capacidade para isolar mais doentes. Em Lisboa, no Santa Maria, os responsáveis já fizeram saber internamente que as habituais 50 hospitalizações em macas assim vão continuar. As camas que lhes iam ser destinadas ficam agora reservadas para o Covid-19.
CONTROLO DE INFEÇÕES SEM DIRETOR HÁ SEIS MESES
A agravar a escassez de quartos para isolamento está o facto de Portugal ter uma das mais altas taxas de infeção hospitalar da Europa. O programa nacional de controlo de infeções está sem responsável há meio ano e nem a iminência desta nova epidemia levou o Governo a nomear um substituto.
“Um plano de contingência significa abrir mais camas e para abrir mais camas é preciso mais pessoal. Mas nenhum dos grandes hospitais teve reforço, nem sequer para a época gripal”, garante a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco. “Não soubemos preparar-nos atempadamente e só quando surgiram os dois primeiros doentes é que começaram as obras nas Urgências dos hospitais de Santo António, Porto, e de Braga [na segunda linha de resposta já ativada]. Se estivéssemos preparados não tínhamos de estar a isolar pessoas em casas de banho várias horas”, critica.
O isolamento de casos suspeitos em sanitários de centros de saúde já foi feito na pandemia de gripe A, em 2009. Mas nessa altura, apesar de tudo, o país estava mais bem preparado, garantem os profissionais de saúde. “Nos últimos dez anos, o SNS perdeu muitas camas e muito do seu capital humano mais experiente, pelo que é com tristeza que admito que a nossa preparação neste momento não é a mesma”, admite o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães.
Uma das maiores lacunas é a falta de um plano nacional que diga a todos o que fazer. “As falhas que nos têm chegado são quase todas relacionadas com a inexistência da publicação de um Plano de Contingência Nacional. A Ordem criou em janeiro um gabinete de crise para esta epidemia e, infelizmente, não tem sido chamado a colaborar na definição do plano”, sublinha o bastonário.
Na verdade, há pelo menos dois anos que parte da estratégia nacional contra ameaças biológicas poderia estar feita. Mas faltou uma assinatura. Receando um ‘Pedrógão biológico’, em junho de 2018, especialistas da Ordem ultimaram um protocolo com a Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) para definir a formação e a atuação em situações de emergência de saúde pública, como a atual. Mas nunca foi assinado pela ANPC, que, ao Expresso, não explicou as razões do atraso.
“Resta a velha competência do desenrasca, acrescida das guidelines da sorte e do deus nos acuda”
Mas com ou sem protocolos e planos nacionais, a realidade sobrepõe-se. “Há muita falta de material, sobretudo máscara e desinfetantes, e de pessoal”, garante Ana Rita Cavaco. E a falta de recursos humanos não se limita à prestação de cuidados, começa antes, na fase crucial do aconselhamento e até do transporte. A linha SNS24 não responde a todos os que precisam — no dia de maior fluxo, dia 2 com 13 mil chamadas, 25% dos contactos ficaram perdidos. E têm-se sucedido relatos de clínicos que não conseguem contactar a Linha de Apoio ao Médico para validar casos suspeitos. E quando conseguem, segue-se a espera pelo transporte pelo INEM e Cruz Vermelha, que até esta semana tinham apenas sete ambulâncias exclusivas para o Covid-19 em todo o país.
O plano nacional de contingência está a ser elaborado e está em marcha o reforço das linhas telefónicas de apoio, do transporte e da compra de materiais. Resta saber se haverá reforço de profissionais e se será suficiente para enfrentar uma ameaça para a qual a OMS diz que nenhum sistema de saúde está preparado.
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