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Kit tecnológico: o castigo ideológico – Alberto Veronesi

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Bem sei que vivemos momentos difíceis e que o foco poderá não estar nas questões de justiça, equidade e constitucionalidade, mas não devemos aceitar que a pandemia e os momentos difíceis sejam desculpa para tudo.

Aqui há tempos, aquando da decisão do Governo de pagar os manuais escolares a todos os alunos do ensino estatal, ao primeiro ciclo oferecendo, aos dos restantes ciclos emprestando num sistema de reutilização, tive oportunidade de dizer que a medida não só me parecia inconstitucional com discriminatória.

Por essa altura, a Provedora de Justiça veio a público pedir que o programa fosse alargado aos alunos carenciados do ensino privado e cooperativo, como que emendando uma medida por si só injusta. Ainda assim, o Governo manteve-se impávido e sereno na sua cegueira ideológica. Adiante.

Com a pandemia e o necessário ensino remoto, carenciado de material tecnológico, o Governo apressou-se a anunciar que todos os alunos teriam o seu Kit Tecnológico e que o importante seria que ninguém ficasse para trás. Só que no meio de tanta benevolência, fica por explicar porque é que uma medida destas, feita com o dinheiro de todos os contribuintes, não abrange de facto todos os alunos, mas apenas os do ensino público.

Para um Governo, seja ele de que partido for, um aluno deverá ser sempre um aluno numa escola portuguesa e, portanto, a medida de diferenciar, discriminando os que optam pelo ensino privado parece-me ser inconstitucional.

Confesso que tenho muita dificuldade em perceber e aceitar este tipo de medidas, quando um Governo pretende, através de leis e portarias, beneficiar uns em detrimento de outros, no caso, beneficiar os que optam pelo ensino público em detrimento dos que optam pelo privado.

Claro que neste momento deve estar a pensar que os alunos que frequentam o ensino privado podem bem pagar um computador, mas quero contra-argumentar, dizendo que essa premissa não é verdadeira, pois há muitos alunos que frequentam o ensino privado com sacrifício dos pais e com ajuda dos contratos simples, assim como há alunos que frequentam o ensino estatal por opção e que vivem num desafogo financeiro invejável.

Pelo que, o que me leva a escrever é a estranheza que me causa esta medida que se baseia apenas num preconceito ideológico.

Será que se trata apenas de um castigo ideológico?

Quando, durante anos, se apregoam os direitos e as igualdades com que o Estado tem de tratar os seus cidadãos, mas depois opta-se por tomar medidas destas, percebemos que a igualdade que se apregoa é muito relativa.

O justo seria todos os estudantes serem abrangidos pela medida de receber o kit informático, não olhando ao tipo de ensino pelo qual optaram, pois trata-se de uma liberdade de escolha e não devemos por ela ser castigados.

Posto isto, sobre estas duas medidas em específico, kits informáticos e manuais escolares, queria deixar três perguntas à Senhora Provedora:

1. Será que não considera que estas medidas não são inconstitucionais, uma vez que, na realidade, há uma efetiva discriminação de uns – os alunos que frequentam as escolas privadas – e o benefício de outros – os alunos que frequentam as escolas públicas? Na realidade, estas medidas sugerem que há cidadãos de primeira e cidadãos de segunda, o que, em minha humilde opinião, contraria o disposto no art.º 13º da CRP, que transcrevo:

1 – Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

2 – Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

2. Relativamente à referência que fez aos “alunos carenciados” que frequentam o ensino privado, saberá a Senhora Provedora que essa distinção não é feita ao nível dos alunos que frequentam o ensino público?

3. Finalmente, não faria sentido a Senhora Provedora recomendar à Assembleia da República a correção destas duas medidas?

Se me permite, repito-me, não concordando a priori com as medidas, dizendo que não posso deixar de alertar para a injustiça das mesmas e para as discriminações sociais que provoca. Recomendo a revogação das mesmas, relembrando que os verdadeiramente carenciados sempre tiveram, têm e terão acesso aos manuais e poderão ter aos kits informáticos, sem que seja necessária esta enorme despesa. A poupança pode ser canalizada para outras, tão mais importantes, medidas educativas.

Caso não haja coragem para revogar as medidas, que haja, ao menos, para as alargar a todos.

Observador