Pelo Público em 30 de Agosto de 2023. Como acordado, o texto está publicado no blogue.
Título:
Há algum sinal de esperança para o desorientado sistema educativo?
Há algum sinal de esperança para o desorientado sistema educativo?
Lide:
A IA será um avanço democrático iniludível. Realizará a maioria das tarefas rotineiras da gestão escolar e ridicularizará a autocracia. Mas será insuficiente.
Texto:
Instalou-se a desorientação no sistema educativo. É notória nas opiniões sobre a relação das crianças e jovens com o digital ou a propósito do professor como profissão. Chegámos tarde a estes debates, principalmente ao segundo por erros graves de percepção dos universos político e mediático. Apenas a explosão dos professores (Novembro de 2022) despertou consciências; e se rebocou sindicatos, não acordou o Parlamento.
A verdade é que o poder político foi indecente com as gerações de professores que democratizaram o ensino. Resume-se na sucessão de acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa que ilegalizaram lamentáveis serviços mínimos aplicados na avalanche de greves nas escolas ou no processo falacioso e indigno de recuperação do tempo de serviço. Capte-se a semântica dos intermináveis protestos para que haja rumo e busque-se na Inteligência Artificial (IA) um sinal de esperança.
Mas antes da réstea de luz, sublinhe-se o óbvio: a ambição escolar das famílias cresce em proporcionalidade directa com o progresso das democracias e tem resultados – duas décadas depois – na redução do abandono escolar e no aumento do número de certificados; portanto, a melhoria desses indicadores é independente das crises vigentes.
Por outro lado, é incerta a substituição de professores por modelos de linguagem da IA. A subjectiva acção pedagógica continuará essencial e exige a centralidade do exercício do professor livre para ensinar (e não do raciocínio indutivo a partir do professor x), como a democracia elege a liberdade em respeito pela liberdade do outro. Também reclama políticas para a falta estrutural de professores em três variantes do substantivo fuga: professores do quadro, milhares de qualificados que experimentaram e desistiram e jovens que nem querem ouvir falar dessa profissão.
Acima de tudo, analise-se olhando para os clássicos. Recorre-se com frequência às tragédias de Eurípedes e Sófocles ou aos textos bíblicos, mas é em Confúcio que encontramos uma passagem oportuna: governar consiste em assegurar alimentos, armas e confiança, sendo a terceira a mais fundamental porque sem ela nem sequer se garante as outras duas.
Pois bem, a fatal desconfiança no professor explica-se em quatro eixos: proletarização, farsa avaliativa com quotas, autocracia na gestão da escolas e inferno da burocracia. Resumidamente, a proletarização a eito integrou um programa que efectivou no Ocidente a maior transferência financeira das classes média e baixa para a alta e com uma prestação de contas carregada de burocracia monstruosa. E se a OCDE, a Comissão Europeia e outros concluíram que “os professores portugueses são os que mais preenchem burocracia inútil” e que a organização das escolas os adoece, para isso muito contribuiu uma trágica categoria nacional: a obtenção de informação por precaução.
E aqui entra a IA com possibilidades salvíficas.
Explique-se sumariamente: estabeleceram-se três categorias (década de 1980) para os sistemas de informação: delimitar (escolher a informação essencial à tomada de decisões) e obter para fornecer. Com as novas tecnologias, associaram-se duas categorias ao binómio obter para fornecer: tempo real e bases de dados relacionadas, com avanços nos privilégios de acesso, nas possibilidades de pesquisa e na eliminação da doentia repetição do lançamento de dados.
Por cá, ignorou-se olimpicamente o conhecimento. A inacção acomodou-se na obtenção de informação por precaução e em obsessivo juridismo e labiríntica legislação; e numa dupla realidade: ao registo frenético de todos os passos em actas e demais parafernália documental, correspondeu o arquivo negligente e inconsultável. Alastrou-se ao digital, nomeadamente à utilização de ficheiros Excel e Word como se fossem bases de dados e com o uso intensivo da cópia e de procedimentos de faz de conta.
Além disso, esta tecnocracia didáctica – que excluiu o que se ensina e o como se ensina (os estilos de ensino da pedagogia, das neurociências e da psicologia cognitiva) – edificou um inferno de círculos concêntricos, com inutilidades informacionais expostas em duas camadas de planificações entre o risível e o indecifrável: ditas transversais ou em desprezo pelo desconhecimento científico sobre o modo como se aprende ao se centrarem num aprender a aprender tão absurdo como um ignorar a ignorar.
Acrescente-se que a burocracia distinguiu as grandes organizações (das empresas aos serviços públicos). Para quem sistematizou as categorias da informação e programou as suas bases de dados, a burocracia foi um não-assunto que, e como reconhecem os estudos mais recentes, favoreceu a cooperação, a inovação, a produtividade e a inclusão; nas restantes, imperou a desconfiança, o taylorismo e a desautorização dos profissionais.
Em suma, caminhe-se para a programação de sistemas de informação com o contributo de todos e recupere-se a equidade como critério elementar. A IA será um avanço democrático iniludível. Substituirá com vantagem programadores e empresas externas de software (o outsourcing), realizará a maioria das tarefas rotineiras da gestão escolar e ridicularizará a autocracia.
Mas será insuficiente. Se o “modo precavido” hiper-burocratizou o vigente quarto nível da transição digital – em que tudo será informatizado, automatizado e usado para controlo e vigilância; a IA e a robotização são o nível cinco -, como é exemplo o infernal e inútil registo digital diário dos sumários dos professores, é fundamental que não contamine a IA abrindo mais portas orwellianas.
Por isso, decrete-se, e repita-se à exaustão, que a um professor não se pode exigir uma qualquer inversão do ónus da prova. Nas democracias que mais avançaram, que estão menos desorientadas e que não rivalizaram a natureza com a tecnologia, os professores prestaram duas contas sempre que necessário – como leccionaram e como avaliaram os alunos – e só lançaram obrigatoriamente dois dados: avaliações e faltas dos alunos. Por cá, a réstia de esperança e de luz acrescenta o desespero por uma IA que ajude a pensar.
Nota no blogue:
Conforme prometido, este texto incluiu as notas para a minha intervenção no dia 1 de Julho de 2023, no colóquio “Margens e Pontes para a Educação”, da “NOVA FCSH“, que se intitulou “Por precaução: o tratamento da informação nas organizações e escolares e a inversão do ónus da prova” e que se pode ver em https://correntes.blogs.sapo.pt/a-minha-intervencao-no-coloquio-3913834