Início Educação Falar verdade sobre políticas educativas – Carlos Ceia

Falar verdade sobre políticas educativas – Carlos Ceia

114
0

1O descongelamento da carreira foi para todos? O Governo recuperou 70% da carreira dos professores? 

Não. Os professores recuperaram 2 anos, 9 meses e 19 dias, o que corresponde a 70% dos quatro anos necessários para os docentes passarem ao escalão seguinte, mas não reflecte o tempo que na realidade foi perdido (9 anos e 4 meses), logo recuperou apenas 27% do tempo total perdido, numa carreira onde se progride horizontalmente e que não pode ser comparada a outras onde há uma hierarquia de categorias profissionais e onde houve uma recuperação de 70% do tempo de serviço em relação a um ciclo de 10 anos.

António Costa já era governante em 2005, com José Sócrates e a ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues, e nessa altura esse Governo congelou todas as carreiras da função pública. Já se esqueceu e agora repete que foi este Governo quem descongelou as carreiras em 2018 e que ele nunca congelou coisa alguma…

2O Governo não pode resolver o problema do tempo de serviço não recuperado dos professores, porque tem de garantir a equidade na administração pública e tratar todos por igual? 

Não. Este mesmo Governo tenta esconder que já quebrou essa garantia de equidade quando em 2019 aumentou consideravelmente os magistrados judiciais, aumentando o fosso entre juízes e professores, médicos e militares, por exemplo. Nos últimos três anos, aumentou duas vezes o subsídio de compensação aos juízes, que recebem hoje 900€ x 14 meses, tenham ou não casa disponibilizada quando estão deslocados da área de residência. O Governo aplicará o mesmo princípio aos médicos em 2024: mais 40% do vencimento e casa quando estejam descolados no interior. Aos professores descolados (na casa das dezenas de milhar) nunca foi concedido nenhum tipo de compensação.

Não está em causa aquilo que se dá aos outros, que é justo, mas a falta de coerência política quando se finge não dar mais aos professores para não ferir uma falsa paridade das carreiras, o que é injusto. Se um professor catedrático ganhasse o mesmo que um juiz conselheiro (ganha menos 1300€), se um professor do ensino básico/secundário no topo da carreira ganhasse o mesmo que um juiz de direito (ganha menos de 1100€), se os professores deslocados tivessem o mesmo subsídio de compensação que é dado aos juízes, militares e médicos, o Governo falaria verdade, mas prefere clicar sempre na mesma tecla falsa da paridade das carreiras.

3O Governo vai acabar com a “casa às costas” dos professores, dando já um contrato estável a mais 8000 professores? 

Não. Na verdade, ninguém entende por que razão o Governo incluiu a armadilha para 2024 de obrigar os contratados a concorrer a todo o país. Esta “bondosa” medida será trágica para o sistema educativo e, muito provavelmente, assistiremos em breve à primeira onda sísmica que irá destruir a escola pública portuguesa. No passado dia 19, saíram as listas provisórias de ordenação à contratação inicial. De acordo com o Blog DeAr Lindo, mais de 30% recusaram a vinculação dinâmica. Muitos grupos de recrutamento irão aumentar a falta de professores. Das 8223 vagas iniciais, provavelmente nem metade serão ocupadas até ao início do próximo ano lectivo.

É bom recordar que também contamos com aposentações precoces (aposentaram-se já 1836 docentes desde Janeiro deste ano e até final de 2023 deverão sair mais de 3000 professores). E como é que se combate à precariedade na profissão de docente e a fixação dos professores nas escolas se se cria um sistema de “contratação dinâmica” que impede, na prática, que milhares de professores não possam chegar à aposentação nos escalões mais altos da carreira? Quem vai querer ficar numa carreira assim reestruturada? Em suma, vamos ter mais professores com a casa às costas e menos professores nas escolas, de uma forma geral e em vários grupos em particular sem solução à vista.

4O Governo está a resolver o problema da falta de professores, pela primeira vez, depois de governos anteriores terem ignorado o problema?

Não. O actual decreto-lei que regula a formação inicial de professores (DL 79/2014) já anuncia, na sua introdução, que será necessário, nos anos seguintes a 2014, aumentar o contingente de professores por força do ciclo previsível de aposentações. Este Governo entrou em funções em 2015, o Conselho Nacional de Educação chamou a atenção para o problema (Pareceres e Recomendações de 2016 e Estado da Educação 2021) e nada se fez.

O Governo aparece agora como o Messias que irá resolver um problema identificado em 2014! Outros países criaram planos nacionais de emergência para resolver este problema global, destacaram orçamentos especiais, como a Irlanda (2 mil milhões de euros) ou os EUA (9 biliões de dólares) e reforçaram os vencimentos dos professores (como a França, onde o início da carreira passou para 2 mil euros).

O Governo português assume a educação como uma despesa e não um investimento, por isso queixa-se de que vai gastar mais com o futuro pagamento dos estágios dos professores em formação inicial (uma medida consensual), mas não vai, justamente, remunerar os professores cooperantes que irão acompanhar esses estágios e o ano de indução previsto também não vai ter orçamento reforçado para poder funcionar nas condições ideais e necessárias; acresce que as instituições de Ensino Superior não vão ter orçamentos compensatórios para acomodar o reforço da formação inicial e supervisão, por isso teremos uma medida politicamente válida, mas sem verdadeira exequibilidade.

Acresce que não se irá mexer nos grupos de recrutamento, onde há um sem-número de problemas. Por exemplo, a escola pública portuguesa é cada vez mais multilingue, mas não se pretende criar o grupo de Português LNM, para que existisse um corpo especializado de professores nesta área, quando há mais de 120 mil alunos estrangeiros nas escolas públicas. Outro exemplo, iremos ter muita falta de professores de Física e Química e Biologia e Geologia, que são grupos bidisciplinares para os quais não há correspondência directa com as mesmas licenciaturas monodisciplinares, o que vai agravar a falta de professores nestas disciplinas, porque é impossível formá-los a partir destes cursos de licenciatura autónomos.

5O Governo recuperou as aprendizagens e garantiu condições para um melhor ensino público? 

Não. Em 2016, lançou aprendizagens essenciais que tinham como objectivo clarificar, para os alunos, pais e professores, o currículo integral (na altura, sob a forma de metas curriculares). Participei como consultor nesse processo, na boa-fé de que tais aprendizagens iriam ajudar a legibilidade do currículo em vigor, simplificando a sua leitura e planificação. Contudo, em 2021, o Governo surpreendeu com a publicação do Despacho n.º 6605-A/2021, revogando o currículo integral (as metas curriculares) e deixando as aprendizagens essenciais como currículo principal e único. Tal simplificação e redução radical do currículo nacional foi uma lamentável reviravolta nas convicções de quem, como eu, havia acreditado nas boas intenções originais das aprendizagens essenciais. Puro engano!

As consequências desta medida são gravíssimas. Não bastou a perda de aprendizagens durante a pandemia, agravou-se a doença com uma infundada redução do currículo nacional. E se pensarmos no modelo de avaliação que foi sendo implementado, sob a inspiração do Projecto MAIA, que conduziu a avaliação dessas aprendizagens ao mais complexo sistema de avaliação que alguma existiu em Portugal, o objectivo original de maior clarificação do sistema educativo foi transformado num puzzle de impossível solução. Podemos também acrescentar uma crença na validade de provas de aferição que só servem para perder tempos lectivos fundamentais e ocupar os professores com avaliações estéreis que não trazem nenhum tipo de benefício ao ensino. Nunca nenhum aluno ficou melhor aluno por relação directa com as provas de aferição; nunca nenhum professor melhorou o seu desempenho profissional pela mesma relação.

Mais, tais mecanismos de avaliação trouxeram níveis de burocracia nunca vistos no funcionamento das escolas e do ensino em geral; roubou irremediavelmente aos professores o tempo para pensarem no seu próprio ensino; empurrou-nos para estatísticas de sucesso escolar falaciosas, em que o número dos bem-sucedidos não é proporcional à qualidade e quantidade do que se aprendeu. Não basta, por exemplo, reclamar o sucesso do ensino profissional (metade dos alunos do secundário estão neste tipo de ensino) se estivermos apenas a falar de dados estatísticos que não provam aquilo que se aprendeu em troca de um diploma.

Outro exemplo: de nada serve defender uma política contra as retenções se arrastam os professores para uma burocracia impossível sempre que alguma retenção se justifica, preferindo-se a aprovação sem mérito apenas para evitar essa burocracia. Em suma, podemos ter bons indicadores de sucesso escolar e fazer boa figura em índices internacionais, mas quando tivermos de medir o que se aprendeu a rigor, veremos se escapamos à caricatura.

Estes são alguns exemplos de medidas nucleares que o Governo tem usado para tentar iludir a opinião pública sobre o sucesso da sua política educativa. Todos sabemos que não é por repetirmos uma mentira que ela se torna verdade. Todos sabemos que pode dar muitos votos convencer a opinião pública de que os professores são o problema central do sistema educativo, mas dificilmente os professores deixarão passar estas mentiras, porque ferem a sua dignidade profissional. Um país civilizadamente avançado não pode olhar para os professores de um sistema educativo como obstáculos ao seu bom funcionamento. Este Governo parece acreditar na graça de Jô Soares: “O material escolar mais barato que existe na praça é o professor.” O pior será quando a praça ficar vazia.

Professor catedrático da FCSH da Universidade Nova de Lisboa

‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.

Observador