Ainda que muitos considerem desnecessário, precisamos de contar mais sobre nós.
Enquanto pessoas, temos o defeito de pensar que, as coisas que acontecem longe do nosso olhar, não existem, ou que os infortúnios só acontecem aos outros. Porém, são inequívocos os sinais de que algo de muito grave está efetivamente a acontecer a todos nós, na nossa coletividade e, em particular, a quem trabalha dentro dos recintos escolares.
É bem verdade que, presentemente, os jovens não querem ser professores, devido aos baixos salários, colocações longe do domicílio, despesa em deslocações e estadias, demasiado trabalho e burocracia. Contudo, quase não se fala de um dos maiores problemas que existe na escola atual – o aumento da indisciplina aliado à falta de autoridade dos professores.
Não há dúvida de que, atualmente, mesmo tendo à disposição mais recursos tecnológicos e didáticos, tornou-se muito mais difícil o trabalho em sala de aula, onde as interrupções são constantes devido a situações comportamentais. Os alunos são muito mais indisciplinados, não têm regras, não sabem estar, não têm valores, demonstram dificuldade em respeitar os seus colegas e os adultos, dão-se mal com a autoridade, não gostam de ser contrariados e – fruto do excessivo tempo em frente aos ecrãs e a videojogos violentos – estão muito mais agressivos e intolerantes. Em suma, estão mais mal-educados. Ainda há pouco começou o novo ano letivo e a pressão dos pais e a violência, indisciplina na escola já começam a tomar proporções alarmantes.
Perante este cenário caótico, o que fazem as escolas? Inacreditavelmente, verifico que muitas delas estão a diminuir o peso do domínio atitudinal nos seus referenciais de avaliação; sem se darem conta, estão a lançar aos alunos um convite à indisciplina.
A classe docente tem-se vindo a queixar do aumento intolerável da violência de que é vítima. No entanto, o que faz quando tem nas mãos este recurso poderoso para minorar o problema? Ignora-o e usa-o contra si, propiciando o seu agravamento.
De resto, qual é o aluno que se vai preocupar com as suas atitudes se o peso desse comportamento na sua avaliação é cada vez mais reduzido? A mensagem que lhes estamos a transmitir é a de que a sua postura não tem importância; passamos a ideia de que ele pode fazer o que bem lhe apetecer, seja bem ou mal, que, no final, isso pouco ou nada contará na sua avaliação.
Mas a problemática da violência não é um exclusivo das escolas, antes pelo contrário, é uma grave chaga social que é despejada para dentro das escolas. Todavia, para a população e para os governos, interessa-lhes alimentar uma crescente fragilidade do estatuto e da autoridade dos professores, transformando a escola num escape perfeito da tensão social onde os cidadãos possam descarregar as suas frustrações. Uma agremiação de gente extremamente hipócrita, repleta de pais que se escudam na dificuldade que sentem em educar um dou dois filhos, para não terem de cumprir as suas obrigações parentais, mas que consideram ser fácil e obrigação de um professor ter de estar numa sala com dezenas de crianças, com diferentes formações e características, a lecionar conteúdos e, ainda, insistentemente a corrigir a falta de educação que veio de casa. E, face a este cenário de enorme debilidade em que se encontra a classe docente, sempre que surgem situações escolares – longe do que acontecia outrora em que os pais procuravam inteirar-se do ocorrido responsabilizando os filhos e assumindo a sua culpa –, hoje dirigem-se à escola manifestando grande agressividade para com os professores. Pais facilmente irritáveis, cada vez mais histéricos, irresponsáveis e violentos que conseguem criar ainda mais problemas do que os próprios filhos.
No início do ano, a primeira atitude dos encarregados de educação é a de formarem grupos de WhatsApp e de Facebook, não para facilitar a comunicação entre si, melhorarem o acompanhamento aos seus filhos e a colaboração com a escola, mas, essencialmente, para disporem de um espaço onde possam julgar e condenar os professores de forma abjeta antes mesmo de se inteirarem das ocorrências. Uma situação que reflete o substrato da falta de ética de uma coletividade doente que prefere resolver as situações em discussões pouco recomendáveis nas redes sociais, à moda dos degradantes reality shows que transpõe para a vida escolar.
O apogeu de toda esta fragilidade revela a sua faceta mais ridícula quando, à luz do direito judicial, todo o cidadão é inocente até prova em contrário, mas, perante uma queixa, confrontado por uma inspeção, qualquer professor parte de uma situação de culpado até que prove o contrário.
Esta conjuntura criou um descomunal constrangimento aos docentes que se sentem cada vez mais desautorizados e ameaçados, contribuindo para que metade dos pacientes de psiquiatria sejam pedagogos e as baixas por depressão aumentem numa classe que está em completo burnout.
Uma situação que favorece o avolumar do número de pais e alunos a exercer violência sobre aqueles que desempenham funções nos estabelecimentos e ensino. Há profissionais de educação com os carros riscados e pneus furados; a serem acossados dentro e à entrada da escola; a serem fechados dentro de salas de aula onde recebem maus-tratos físicos de alunos; a serem queimados com materiais inflamáveis; a terem de receber tratamento hospitalar; a serem alvo de todo o género de ameaças físicas, verbais e escritas de pais e alunos que sentem uma aura da impunidade deixando os agredidos submersos numa sensação de vulnerabilidade.
E os casos conhecidos representam apenas uma pequena percentagem das ocorrências, porque muitos profissionais isolam-se, sentem vergonha ou medo e não denunciam, metem baixa ou abandonam a profissão. A isto juntam-se as direções escolares que abafam a maioria destas situações, para não passarem uma má imagem lá para fora; a inércia do ministério da Educação que nada diz e, quando fala, perante a opinião pública, menospreza e rebaixa os professores; a comunicação social parasita que, na sua eficácia narrativa, contribui para desinformar, difamar os profissionais das escolas e dar maior ênfase a casos pontuais de má conduta sobre os alunos do que da violência exercida sobre quem trabalha no ensino, por serem notícias que vendem muito mais; pais que apontam o dedo à escola para que esta faça aquilo que era da sua responsabilidade.
Como é que se atrevem a fazer esta enorme pressão sobre professores, auxiliares e técnicos, tornando-os no saco de pancada de uma sociedade malformada e oportunista?!
Como se permitem intimidar, empurrando para a solidão e desespero profissionais que formam as próximas gerações?
Está consagrado em lei que os estabelecimentos de serviço público têm de assegurar condições de higiene e segurança para todos os seus utentes. Acontece que, nas escolas, isso não tem vindo a acontecer, especialmente para quem ali trabalha.
Não é aceitável que continuemos a permitir que a casa da educação seja palco de má-educação, indisciplina, violência e injustiça. Não é tolerável que os profissionais se sujeitem à pressão das direções das escolas e imposições governamentais. Não é admissível que aqueles que se dedicam a educar e formar os filhos dos outros, sintam ansiedade e medo no próprio local de trabalho.
Mas, como apoiá-los não é suficientemente popular para garantir à falange partidária um aumento nas intenções de voto, nem assegurar a eleição dos dirigentes escolares devido ao diminuto peso que têm nos processos eleitorais, tampouco contribuir para a venda de jornais, simplesmente, estes profissionais não contam para nada. Bem vistas as coisas, seria uma tolice ingénua acreditar que, fora das escolas, haverá alguém interessado neste fenómeno.
No meio de uma situação, que já faz parte do dia comum da vida das escolas, vamos ficando com profissionais, física e psicologicamente, marcados para o resto das suas vidas, sem que se faça algo verdadeiramente consequente para os proteger e evitar que a opressão e agressão ocorram.
Isto, por si só, já era motivo mais do que suficiente para que os profissionais viessem para a fora das escolas e se recusassem a trabalhar enquanto não se lhes fosse devolvida a segurança, a autoridade e o respeito.
Há coisas que, pura e simplesmente, não deveríamos tolerar, sob pena de estarmos a contribuir para a formação de uma sociedade ainda pior do que aquela que temos.
Carlos Santos