O que aconteceu às escolas nos últimos dois anos foi suficientemente grave para justificar que continue a insistir no tema, a propósito de várias notícias surgidas esta semana.
Vamos à primeira. Esta semana foi publicado na revista Nature um trabalho muito importante de Ana Sucena, Ana Filipa Silva e Cátia Marques, investigadoras do Centro de Investigação e Intervenção na Leitura do Instituto Politécnico do Porto. As autoras trabalharam com 446 alunos de 19 escolas diferentes durante o primeiro período de 2020. O estudo foca-se em crianças do segundo ano, isto é, aquelas que tinham passado uma parte substancial do seu primeiro ano em ensino remoto. Por outro lado, as autoras trabalham com sensivelmente metade de escolas em Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP), o que permite distinguir a situação das crianças de acordo com o seu estatuto socioeconómico. As autoras implementaram um teste de rastreio de leitura, um instrumento desenvolvido pelas próprias para crianças de língua portuguesa do primeiro ano.
Em setembro de 2020, 27% dos alunos tinha competências de leitura muito baixas (em tempos normais, há 10% nestas condições) e apenas 45% tinha competências aceitáveis (em tempos normais, há 70% nestas condições). No entanto, estas médias escondem importantes diferenças. Nas escolas TEIP, havia 31,7% de alunos com competências muito baixas e 50% com competências aceitáveis. Nas restantes, estas percentagens eram de 21,8% e 58,9%. Portanto, as dificuldades de leitura eram maiores nas crianças menos privilegiadas. A outra parte importante deste estudo é que ele também mede o impacto de um programa de consolidação de aprendizagens implementado nestas escolas logo no outono de 2020, que não só teve resultados positivos para os dois grupos de alunos, como diminuiu as diferenças entre as crianças mais e menos favorecidas. A boa notícia é que é possível remediar as perdas de aprendizagem com programas de apoio que, para mais, ajudam mais quem mais perdeu. A má notícia é que isto foi feito logo no início do segundo ano de escolaridade, há mais de um ano; resta saber se ainda vamos a tempo de dar a mão às crianças que não tiveram a sorte de participar neste estudo.
Ninguém acorda um dia e pensa “já não vou à escola” e deixa de ir. O abandono escolar é um processo lento, que consiste em ir faltando, ir perdendo o interesse, até ao abandono final. É por isso que os períodos prolongados de ensino online constituem um risco, porque muitos alunos acabam por desistir, progressivamente, de assistir às aulas e podem depois manter esse registo intermitente (ou não regressar, de todo) quando a escola volta a ser presencial. Por exemplo, em França, sabemos que, em 2020, 4% dos alunos não participou no ensino online e a percentagem sobe para 20% no ensino profissional (as escolas não fecharam em 2021). Em Itália, um relatório do Save the Children de janeiro de 2021 reportava que 28% dos jovens entre 14 e 18 anos afirmava que pelo menos um colega tinha desaparecido do ensino online.
Acontece que a taxa de abandono escolar noticiada esta semana não mede nada que se pareça com este fenómeno. Esta estatística é calculada a partir do Inquérito ao Emprego (um inquérito trimestral realizado pelo INE para tomar o pulso ao mercado de trabalho) e mede a percentagem de adultos entre 18 e 24 anos que não tinham completado o ensino secundário e não estavam inscritos em programas de educação ou formação. Ou seja: os jovens adultos que entram no mercado de trabalho antes de completar 12 anos de escola. A principal virtude deste indicador é poder ser calculado simultaneamente para toda a União Europeia, sendo o Inquérito ao Emprego um instrumento estatístico comum a todos os Estados-membros.
O problema do indicador é óbvio: mede o abandono quando já é tarde demais. Depois dos 18 anos e quando estas pessoas chegam ao mercado de trabalho. Não permite de nenhum modo a identificação precoce e monitorização dos riscos. Quanto mais o desenho de políticas para o mitigar a tempo. Para isso, é preciso utilizar as bases de dados do Ministério da Educação que seguem o percurso individual de cada aluno. Segundo um relatório da rede europeia Eurydice, publicado em dezembro último, Portugal faz parte de um grupo restrito de cinco países europeus que não calculam um indicador baseado nesta informação, junto com Alemanha, Espanha, Eslovénia e Eslováquia. Segundo o PÚBLICO, a Direção-Geral de Estatísticas da Educação está a desenvolver este indicador, só que vai chegar tarde para apanhar em tempo útil os potenciais desanimados da pandemia.
O que me traz a Marcelo Rebelo de Sousa. Recebendo alunos de uma escola de Cascais esta semana em Belém, reconheceu que foram dois anos letivos “mais ou menos semiperdidos”, para logo acrescentar que “aquilo que se perdeu em estudo, ganhou-se em experiência de vida”. Os anos da pandemia representam para as crianças horas em frente a um ecrã vendo os amigos num quadradinho preto (para os que tinham computador e Internet), máscaras nas salas de aula e nos recreios, proibição de brincar nos parques infantis, suspensão da atividade desportiva, das brincadeiras despreocupadas, dos namoros e das amizades. Para além de isolamentos compulsivos e inconstitucionais.
Para a boa “experiência de vida”, Marcelo recorreu a uma comparação despropositada com os anos revolucionários. Só que não tem mesmo nada a ver. A geração de Marcelo viveu a revolução com esperança no futuro. Estas crianças vivem há dois anos num clima de medo do futuro. Do Presidente, esperamos que chame a atenção para este problema e condicione o Governo a agir com políticas consequentes. Não um empurrãozinho para o varrer para debaixo do tapete.
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico