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Ensino À Distância: Professor em serviço 24h / 7

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Os professores não têm tido mãos a medir e estão a fazer das tripas coração para acompanhar e ensinar os alunos. A Renascença dá-lhe a conhecer o dia-a-dia de duas professoras, uma do 1º ciclo do ensino básico e outra do 3º ciclo e secundário.

Fátima Torre tem 58 anos. É professora do 1º ciclo do ensino básico. Doutorada em Análise Psicoeducativa na Escola, Fátima podia optar pelo ensino superior, mas o gosto e a paixão pelas crianças mantêm-na no primeiro ciclo. Apaixonada pelo que faz, sente o ensino à distância como um desafio, uma experiência nova, um compromisso.

“Eu considero que um professor do primeiro ciclo é a extensão da família, a extensão da mãe e do pai. É como que uma corrente que se cria e os laços perduram para sempre. São laços que se criam e que vão ser eternos”, afirma.

Nestes tempos em que tudo é novo para todos, a professora Fátima destaca a capacidade que os professores tiveram de reinventar a escola. Os professores, mas também os coordenadores, as direções das escolas e os próprios pais. “Tem sido toda a gente incansável”, assinala.

Trabalho duplicou

Em termos de trabalho, Fátima não tem dúvidas de que duplicou e em termos de horas também – não se equipara ao tempo que despendia na escola.

“Não digo que é dobrado, mas numa fatia bem maior que tínhamos com as aulas presenciais. Temos de reinventar tudo: as ferramentas, aprender a trabalhar com essas ferramentas digitais que, para muitos de nós, já não eram novas, mas outras eram; aprender a fazer vídeos, aprender a partilhar a tela … São coisas, capacidades que tiramos da nossa cartola, mas somos capazes de realizar”, conta.

Quando as aulas aconteciam no espaço físico da escola, Fátima Torre entrava às 9 horas e saía às 16h00. Agora não há horas para ligar nem para desligar. “Não diria que são as 24 horas, mas muitas vezes estou à meia-noite a atender dúvidas e a receber trabalhos e reuniões com os pais”.

Fátima dá aulas síncronas e assíncronas às 25 crianças do 1º ano. “As síncronas são três vezes por semana, onde as crianças têm oportunidade de ter contacto com o professor e também com os colegas. Cada vez que nos encontramos é uma festa”, conta à Renascença.

Professores mais expostos

Nas aulas síncronas, os pais estão presentes. E, por isso, Fátima considera que agora “os professores estão muito mais expostos”.

“Os pais têm agora oportunidade de ver como é que se faz, têm agora uma amostra do que é o trabalho de um professor no desenvolvimento das atividades, da matéria e o esforço e empenho em chegar a todos os meninos, porque a escola é para todos, é para aqueles que têm as facilidades todas e para aqueles que têm as dificuldades todas e não são poucas”, sublinha.

De acordo com a professora do 1º ciclo do ensino básico, “o trabalho é imenso, as planificações são feitas na mesma, os trabalhos chegam quase diariamente ao nosso telemóvel por WhatsApp, por mensagem, por telefone. O contacto é constante.

As aulas síncronas são realmente momentos de encontro, os meninos têm oportunidade de tirar dúvidas, de reencontrar os colegas e os professores”. Já as aulas assíncronas são para “receber e verificar onde os meninos têm dificuldades”.

“E por mensagens, aí estamos nós, a qualquer hora do dia. São praticamente as 24 horas do dia”, conta, assinalando que “ainda que muita gente pense que os professores não fazem nada, essa imagem que tem a sociedade tem de mudar”.

“Só quem sente e está dentro das coisas é que pode falar com autoridade sobre isso. Eu tenho a sorte de ter um grupo de pais excelentes, que valorizam o trabalho do professor e têm-me feito maravilhas, surpresas lindíssimas”.

A família em segundo plano

Fátima é mãe de dois filhos. Um já está na universidade, o outro frequenta o 10º ano de escolaridade. Há dias quase impossíveis. Cada um a trabalhar no seu computador. São três computadores. E eu posso dizer que os meus filhos têm ficado em segundo plano”, admite.

“O meu mais novo, que tem agora 15 anos, precisa de muito acompanhamento. Aproveito os fins de semana, mais o sábado, para ir dar uma voltinha com ele. Depois chegamos a casa, vai lanchar e depois dou-lhe o apoio que ele precisa”, conta.

A vida é uma correria permanente, mas “ser professor é, acima de tudo, vocação, como sinónimo de missão”, observa, confessando que já tem saudades do ensino presencial, da relação com as crianças.

“É a saudade constante, presencial. Só ver aquele brilho nos olhos que vi na primeira aula síncrona que fiz, vale tudo, vale o sacrífico, vale tudo. Eles sabem disso e os pais também. E os pais são espetaculares”.

Fátima Torre vê e sente a escola como um complemento à família e, por isso, defende a valorização das famílias – “porque elas são o suporte” e a valorização dos professores – o que não acontece, denuncia.

“A sociedade está mais preocupada em apontar o dedo a pequenas falhas que a escola também tem. E nós precisamos mais de quem nos ajude a sermos melhores do que quem nos aponte o dedo e diga que os professores não valem, que não querem, que são preguiçosos”.

“Maus e bons profissionais todas as profissões têm e na sociedade há bons e maus profissionais em todas as profissões que existem. Mas não apontem o dedo aos professores, por favor”, pede a professora, realçando que “os professores trabalham imenso, dão o que têm e o que não têm de si. Deixam as suas famílias, relegam as famílias para segundo lugar”.

“Esta é a mais pura verdade. É a verdade nua e crua”, conclui.

“Bombardeada por emails e trabalhos dos alunos”

Paula Carvalho tem 50 anos, é professora de matemática. Mestre em Administração Educacional, dá aulas a uma turma do 3º ciclo e a três turmas dos cursos profissionais. É também diretora de turma.

“Não é fácil. São mudanças muito drásticas. Tivemos que nos adaptar assim muito de repente a uma realidade completamente nova e não tivemos tempo sequer para nos prepararmos”, diz à Renascença.

Em casa, o trabalho também aumentou para a professora de matemática, porque, a qualquer hora, é “bombardeada por emails e trabalhos dos alunos” e, às vezes, tem “alguma dificuldade em gerir o tempo”.

“Os alunos mandam email a qualquer altura. Se se lembrarem de mandar um mail às tantas da manhã com um trabalho, mandam, ou uma mensagem. E não pensam se são ou não são horas”, conta.

Paula Carvalho está a utilizar a plataforma ‘zoom’ para dar as aulas e depois envia para o email dos alunos os trabalhos devem fazer.

“Há muitos alunos que não têm computador, mas têm o telemóvel e assistem às aulas através do telemóvel e fazem os trabalhos no caderno”, diz a professora, acrescentando que “isso é bom, porque resolve o problema de quem não tem o computador”.

Também assim a professora se “certifica” que cada um faz o seu trabalho, “porque, depois, eles têm que enviar fotografias do caderno”.

Mas tudo isto exige um esforço maior à professora que, de repente, começou a ver chegar ao email mais de 50 mensagens e, por isso, teve que “adotar uma estratégia” para se “tentar organizar” e que foi criar um email apenas para receber os emails dos alunos, os trabalhos”.

Sem coragem para dizer “agora não”

Paula Carvalho assegura que os professores estão a “trabalhar mais” do que se estivessem na escola. “Temos muito trabalho e estávamos habituados a dar as aulas de uma forma e agora as aulas são dadas de outra forma”.

“Temos que as preparar as aulas de forma diferente, o que nos leva mais tempo para preparar as aulas. Eu, como professora de matemática, utilizava muito o quadro. Agora, sem o quadro, tenho que preparar muitos materiais para fazer compartilhamento de tela e os alunos verem”, explica.

Os professores foram obrigados a descobrir estratégias para resolver os problemas e “essas pesquisas também levam tempo e trabalho”.

Depois, diz Paula, há que dar o ‘feedback’ aos alunos. “No outro dia fiz a contagem e recebi e respondi a 57 mails”. Isto, porque “não adianta os alunos mandarem-nos os trabalhos e não lhe darmos o ‘feedback’. Tem sido muito trabalhoso e depois não temos horas. Os alunos são capazes de nos enviar uma dúvida a qualquer hora e até no feriado o fizeram, mas eu não tenho coragem de lhes dizer “agora não!”

Alunos reagem bem e estão interessados

De acordo com a professora de matemática, os alunos “estão a reagir bem, melhor do que pensava”.

“Eles próprios já estão com saudades da escola. Eles, que se queixavam sempre, se pudessem, voltavam para a escola. Não está a ser fácil também para os alunos”, observa.

Paula Carvalho também tem saudades dos alunos. E, se pudesse escolher, se estivessem garantidas as condições de segurança, a sua escolha recairia sobre as aulas presenciais.

“Preferia o contacto com os alunos que, depois, quando regressarmos nem o vamos poder ter da forma que tínhamos. Não é a mesma coisa, não. É muito melhor dar aulas na escola, estar com os alunos, conviver com eles. Eu preferia ir trabalhar. Claro, neste momento, ir trabalhar para conviver com o vírus, claro que não”.

A professora de matemática já não vai regressar à escola este ano letivo, porque não tem aulas com exames nacionais, mas sublinha que, à distância, as aulas vão-se prolongar até mais tarde.

“Vamos ter aulas até ao fim de junho, mas online. Pensei que os alunos fossem reagir mal ao facto de terem aulas até tão tarde, mas estão a reagir bem. Eles gostam de conviver e uma vez que não podem conviver presencialmente, com os colegas e com os professores, também lhes faz bem este convívio online”.

Fonte: RR