A notícia era esperada, mas nem por isso resultou menos chocante. Numa quinta-feira, depois de dias de especulações e palpites, António Costa contrariou a recomendação do Conselho Nacional de Educação e comunicou ao país que iria encerrar as escolas na segunda seguinte. A causa — a contenção do coronavírus, que não parava de alastrar — seria a mesma que, pouco mais tarde, sustentou a declaração pelo Presidente da República de um estado de emergência como não se via desde 1975.
Nessa quinta-feira, a normal noção do quotidiano estilhaçou-se. Durante tempo indeterminado, as crianças não pisariam a escola, e aquilo que viesse a ser colocado como alternativa era do domínio do enigma. Cada escola faria como pudesse ou soubesse, cada professor veria colocada à prova a sua literacia tecnológica e a capacidade de transcender ou não as aulas presenciais. Qual músicos a quem é retirada a partitura, tiveram de improvisar, e foi o salve-se quem puder: de facto, naqueles 15 primeiros dias confusos, houve de tudo um pouco, de aulas virtuais mais ou menos estruturadas e uso escorreito das plataformas virtuais a TPC mandados por e-mail em catadupa; de sessões de esclarecimentos por WhatsApp a power points explicativos; de pedidos de trabalhos escritos a outros de apresentações orais. Cada professor lançou mão do que tinha mais à mão. A noção de um certo excesso instalou-se, como se a falta de presença física só pudesse ser colmatada com uma chuva torrencial de propostas que prendessem os alunos ao computador e à rede.
Passados os tais 15 dias, independentemente do que vier a acontecer — e já se sabe que o fim das férias da Páscoa trará uma segunda dose —, a escola nunca mais será a mesma. A instauração repentina de um modelo à distância pôs em evidência falhas, lacunas e competências. Criou necessidades antes despercebidas ou não levadas suficientemente a sério e transferiu para o virtual as desigualdades do terreno, mostrando que em Portugal, no século XXI, nem todas as crianças têm os meios ou o acesso. Permitiu, portanto, traçar um retrato do que seria o ensino se todos os instrumentos com que conta estivessem à disposição e fossem dominados pelos seus intervenientes. Colocou a fasquia mais alta no que toca ao investimento no parque tecnológico escolar e nas ferramentas para uma verdadeira cidadania digital. Não, 15 dias depois não estamos no mesmo patamar em que estávamos. No mínimo, vemos mais.
Cada época traz consigo uma palavra, e talvez daqui a uns anos possamos dizer que a covid-19 nos fez ir à procura de um termo antigo, ainda que dotando-o dos métodos e conhecimentos dos nossos dias. Basta exercitar um pouco a memória e recuar aos anos 60, quando em Portugal foi implementada a telescola, em que os alunos acediam aos conteúdos letivos por meio da televisão. Em princípio, no dia 14 de abril e durante o 3º período, os alunos até ao 9º ano irão permanecer em casa e voltarão a ter disponíveis conteúdos escolares pela TV. Para isso contarão com canais da TDT (Televisão Digital Terrestre), a RTP2 e a RTP Memória, que são gratuitos e de acesso universal, a emitirem “conteúdos pedagógicos temáticos” organizados do 1º até ao 9º ano, numa grelha de segunda a sexta-feira. O pré-escolar terá também programas próprios, mais especificamente via RTP2.
“A ideia não é replicar a antiga telescola. É preciso ter cuidado ao comparar este novo recurso com a telescola que existiu no passado em Portugal, pois essa era semipresencial, com os alunos presentes em sala de aula e com um professor-monitor, também presencial, a acompanhar as aprendizagens, sendo difundidas as matérias remotamente através da TV. O que temos agora é diferente: é uma estratégia complementar para coadjuvar o precioso trabalho que tem sido feito pelos nossos professores”, disse ao Expresso o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues. “Estes recursos pedagógicos são um complemento e um recurso de apoio, primeiramente, para que os alunos sem conectividade ou equipamento possam beneficiar das aprendizagens aí disponibilizadas, independentemente de outras utilizações que possam ser feitas pelos docentes”, notou. “Sabemos que as escolas têm encontrado soluções de acesso, com os alunos recorrendo às novas tecnologias. No entanto, compreendendo que é importante chegar a todos os nossos alunos. Acreditamos que a adoção de meios mais tradicionais, como os canais de TV — que estão, simultaneamente, na TDT e no Cabo —, implicará um acesso generalizado. De certa forma, a TV chega à generalidade da população, e temos aqui também a possibilidade de universalizar e poder chegar a todos”, especificou Tiago Brandão Rodrigues, frisando que a solução “não é uma panaceia nem resolve todas as questões, mas é mais uma ferramenta que permite alargar o espectro dos alunos que podem aceder a conteúdos pedagógicos”.
ASSUMIR UM ATIVISMO DIGITAL
“Há muito tempo que integramos na agenda educativa a educação e a cidadania digital, mas até hoje não houve a consciência de que era preciso fazer um pacto social à volta desta questão”, diz Luísa Aires, professora do Departamento de Educação e Ensino à Distância da Universidade Aberta, ao Expresso. Sendo “expectável” que surgisse uma diversidade de respostas perante a emergência que vivemos e sendo claro que não houve tempo para delinear um plano ou antecipar cenários, “se assumíssemos um ativismo digital, no sentido de se promover a educação digital para todos, conseguiríamos transformar um problema num horizonte imenso de possibilidades”. Para esta docente, trata-se em primeiro lugar de “aprender com isto”, de modo a que a oportunidade criada — por exemplo, de “democratizar o acesso à internet e aos equipamentos” — não seja desperdiçada.
De repente, o conceito de ‘educação à distância’ “passou a ser uma expressão usual no discurso de toda a gente”. Porém, não está uniformizada. E o que é? Assente num princípio de democraticidade no acesso ao ensino de adultos, hoje usufrui dos benefícios de uma sociedade digital. “Existe o mito da educação à distância como sendo um estudo solitário, mas num ensino que é interativo e participativo isso já não se coloca. Há presença, embora não seja física”, explica Luísa Aires. E se uma escola digital a funcionar em velocidade de cruzeiro “leva tempo”, não deixa de contar com uma multiplicidade de suportes prontos a serem utilizados consoante as faixas etárias. Nas mais novas (até ao 9º ano), em que “um ensino totalmente digital não é realista”, requer-se que além das orientações da tutela sobre “procedimentos genéricos” se permita que “cada escola tenha autonomia na definição dos seus planos de ação e de como os concretizar”. No secundário, aí sim, é necessário um pensamento digital. “Não é uma missão impossível. Se reconhecermos que este é um movimento nacional para o qual todos — autarquias, ONG, empresas — têm de dar o seu contributo, doar um tablet ou um portátil não é um gesto exagerado. Seria possível que todos tivessem uma ferramenta de trabalho e uma pen de acesso à internet”, opina a professora.
“A ideia não é replicar a antiga telescola. O que temos agora é diferente: é uma estratégia complementar para coadjuvar o trabalho dos professores”, diz o ministro da Educação
Fonte: Expresso