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Educação: a cativa que me tem cativo – João Jaime Pires

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Nos últimos tempos, tem sido com profunda inquietação que me interrogo sobre qual foi o momento temporal em que a educação deixou de se tornar uma prioridade, uma paixão que prometia florescer, para deixar de ser tema. Proponho apenas três apontamentos sobre o que penso ser, atualmente, o estado da educação – o vale dos silêncios, os desaparecidos em combate mas, tal como Sísifo, continuamos convictamente a carregar a pedra, acreditando que algum dia chegaremos ao topo da montanha. E se por absurdo voltássemos a tentar?

1-O Vale dos silêncios. E sem se dar por nada, paulatinamente, ela aí está! A descentralização. Tal como afirma Susana Amador, Secretária de Estado da Educação, 2020 será marcado como mais uma mudança de paradigma na Educação, com o centralismo a diminuir significativamente e o avanço calado da descentralização a dar cumprimento a objetivos de maior eficácia, eficiência e proximidade das políticas públicas. A promessa é a de um olhar atento das autarquias no que à educação diz respeito – alimentação, transporte, sucesso, solidariedade, planeamento, recursos, correção de desigualdades e assimetrias, lógica de proximidade, investimento, equipamento e manutenção de edifícios escolares, mediante a prática já acumulada. É, talvez esta, a linguagem do silêncio – dar garantia de sucesso conseguido em todo o processo. Mas será que todas as autarquias dispõem das mesmas condições humanas, físicas e económicas para dar resposta a todos os objetivos de uma forma igualitária para todos os cidadãos? Será possível assegurar uma decisão administrativa que não tenha uma componente pedagógica? Faz sentido que coexistam no mesmo espaço escolar funcionários do município (assistentes técnicos e operacionais) e outros do Ministério de Educação (professores)? Ou não pertencemos todos ao mesmo projeto educativo de escola? Ou as escolas deixarão de ter uma identidade dentro da sua localidade? DGAE, DGEsTE, IGEC, IGeFE, CAP, diretores de escola e/ou agrupamentos, conselhos gerais, vão continuar a existir? Com que competências? Tantas questões se levantam e tanto o silêncio!

2-Desaparecidos em combate. No meio de um aparente e confortável oásis administrativo e financeiro, continua a verificar-se a ausência de políticas educativas consistentes. Na lógica aditiva de programas, metas, aprendizagens (fundamentais, mínimas, essenciais), competências do séc. XXI, referenciais, perfis, quais os documentos curriculares que prevalecem e que constituem o verdadeiro currículo? Na gula documental em que escolas e professores se afogam a comparar, selecionar, refletir, articular, fundamentar, incluir, excluir, opções que deviam ser simples, mas que não são, o que prevalece? Onde fica a reflexão, o debate, as opções, as decisões sobre o acesso ao ensino superior, a avaliação do desempenho docente, o estatuto do aluno e da ética escolar, o modelo de gestão e administração das escolas? Tudo está bem nesta quietude de benfeitorias em que, transferindo para as autarquias problemas crónicos (como o amianto, por exemplo), o Ministério da Educação se livra de contestações já ignoradas por todos. Continua a ser manifestamente evidente que é expetativa do Governo que muitos programas, planos, projetos e decretos sejam implementados à conta da boa vontade de funcionários, professores e direções das escolas, caso contrário, as opções ficarão uma vez mais no papel, transformando-se em outros domínios de autonomia fracassados. Gastaram-se. Foram problemas que deixaram de servir. Verdadeiramente não se resolveram – gastaram-se. O que foi feito dos grandes temas, desaparecidos em combate, que continuam a dar corpo aos silêncios e aos desalentos? O que pensa o Ministro da Educação? E os partidos com assento na Assembleia da República?

3-E se por absurdo voltássemos a tentar? Dentro de quatro anos muitos professores vão sair do sistema, aqueles que poderiam assegurar a passagem do testemunho. De repente, passamos do excesso à carência. Como vai ser pensada a formação de professores para fazer face às necessidades? Quais são as propostas para a renovação da classe docente? Quem quer ser professor? Segundo o relatório do Conselho Nacional de Educação de 2019, só 0,02% dos docentes estão no topo da carreira com média de 61,4 anos de idade e 39 anos de tempo de serviço, e muitos dos mais jovens, estão ainda impossibilitados de fazer planos a médio ou a longo prazos, vivendo o dia-a-dia no fio da navalha, sem qualquer estabilidade. Apesar da escolaridade ser o indicador com maior impacto no crescimento económico, entre 2009 e 2018, os cursos da área de “Educação” foram os que registaram maior quebra de inscritos no 1º ano, pela primeira vez. Os professores encontram-se sem uma carreira valorizada e sem dignificação da classe, pelo que poucos jovens olham para a profissão como uma carreira de futuro promissor.

Mas, tal como no mito de Sísifo, apesar do mundo ser um lugar estranho e desumano, é nele que grande parte da nossa vida é construída, com a esperança do amanhã. Há alguns anos, António Guterres utilizou o slogan ‘Paixão pela Educação’ e, como humanista convicto, acreditou que um país mais formado seria um país melhor. Precisamos voltar a acreditar nesta paixão. É que, apesar de tudo, as escolas continuam a estar dotadas de profissionais a quem os pais confiam “a guarda” dos seus filhos, em muitos casos mais de sete horas por dia; são eles que, em primeira mão, com o olhar cuidadoso e atento detetam problemas, dificuldades e os comunicam à família, no zelo do bem-estar e da saúde dos jovens, e são eles, que, apesar de todas as adversidades, continuam a levar a bom porto a sua missão – o desenvolvimento de competências a vários níveis (académicas, pessoais, sociais, profissionais), numa relação privilegiada com seres humanos em desenvolvimento. As escolas continuam a estar dotadas de pessoas que, no seu quotidiano, independentemente das condições adversas, demonstram a mesma motivação, a mesma vontade, o mesmo empenho e o mesmo espírito de missão para que todos os alunos tenham sucesso.

Em maio de 2018, Guterres voltou a afirmar que a Educação deve ser a paixão de todos os governos, considerando-a a base para o desenvolvimento e a paz, pelo que, neste “momento absurdo” em que todos se calam, acredito que algum destes dias, um Ministério cheio de invisibilidades nos surpreenda com o debate, a reflexão, as propostas, as ideias, os compromissos de uma paixão renovada. A não ser assim, resta-nos voltar ao tempo em que ‘De todos os sonhos do homem, a única coisa que não falhou foi o sonho. E é por isso que ele continua’.

Diretor da Escola Secundária de Camões
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.