Início Importados - Educação E agora, que notas lhes vamos dar? – Carmo Machado

E agora, que notas lhes vamos dar? – Carmo Machado

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Perante a imprevisibilidades destes últimos meses, vivemos seguramente o terceiro período mais inusitado de toda a nossa vida de professor, com a passagem abrupta para uma nova forma de ensinar e de aprender. Estivemos – e continuamos a estar – na linha da frente, numa inigualável missão: manter a normalidade possível num mundo virado do avesso. Fomos comprar um novo computador (ou mesa digitalizadora, auscultadores, colunas, discos rígidos, etc) a prestações, reforçámos os serviços de internet, frequentámos ações de formação de última hora para conhecermos as novas plataformas, participámos em reuniões de todo o tipo, aceitámos o contacto com alunos e os seus pais a todas as horas e em qualquer dia da semana. Tudo para cumprir o nosso dever profissional. Alguém tem dúvidas disto?

E agora aproxima-se o momento em que vamos ter de avaliar os nossos alunos em tempos de pandemia. Algumas inquietações começaram a surgir em alguns de nós, facto perfeitamente normal, sendo o processo de avaliação um dos mais exigentes, no sentido de dever ser justo, objetivo e significativo. O Ministério da Educação assumiu que o terceiro período continuaria a ser um período de aprendizagem e que, por isso mesmo, a avaliação podia e devia acontecer. Nada contra. De acordo com o documento Princípios Orientadores para uma Avaliação Pedagógica em Ensino a Distância (E@D), intitulado Avaliar para melhorar as aprendizagens, o novo cenário com que fomos confrontados torna obrigatória a necessidade de repensar o processo de ensino e de aprendizagem, o que implicará adaptações na forma como se avalia.

Ora, sendo a avaliação eminentemente formativa e um instrumento ao serviço das aprendizagens, deve ser utilizada – neste terceiro período ainda mais do que nunca – para ajudar os alunos a refletir sobre a forma como geriram essas aprendizagens e menos como uma punição que ela não deve ser. E neste ponto, contrariamente ao que muitos possam pensar, se perguntarmos aos alunos como se autoavaliam, eles fazem-no com uma perspetiva tão clara e objetiva que quase nos surpreendem. Eles próprios avaliam o seu empenho e desempenho, a sua maior ou menor motivação, admitindo (em muitos casos) que se desligaram da escola…

A verdade é que ensinar neste terceiro período foi diferente e, por isso, avaliar também terá de o ser. Mas será mesmo assim? Será que foi tudo tão diferente do habitual? Tínhamos mesmo as competências necessárias, professores e alunos, para ensinarmos e aprendermos desta forma? Eu tenho dúvidas. Os meus alunos raramente ligaram a câmara. Quando o fizeram, a pedido, quase imploração, fui surpreendida com alunos despidos da cintura para cima, enfiados na cama, estendidos no areal ou mesmo a tomar uma refeição com toda a família… Muitas vezes dei aula para todo o agregado familiar: aluno, pais e irmãos mais novos. Sem qualquer problema.

Afinal, adaptamo-nos a tudo. Somos professores, lembram-se? Estamos mais do que habituados a mudanças. Vivemos, há várias décadas, com os muitos constrangimentos de uma profissão que passou a ser vista como o saco de boxe de uma sociedade sitiada, pobre, desprovida de valores e, sobretudo, que deposita da escola e nos seus professores, mesmo sem que o admita, as expectativas de futuro. E nós, ano após ano, temos tentado colmatar muitas das suas lacunas. Porém, será que sabíamos exatamente como ensinar neste novo modelo?

Não se iludam. Desta vez, não tivemos tempo de aprender a ensinar à distância. Conseguimos, isso sim, instalar as aplicações necessárias, aprender sobre o seu funcionamento e manter uma ligação aos alunos para que estes e as suas famílias não se sentissem abandonados. E, pelo meio, tentámos manter nos alunos uma sensação de normalidade – a possível – através do desempenho de tarefas às quais fomos devolvendo também o feedback possível. E foi tudo. Se houver por aí professores que tenham conseguido fazer muito para além disto, por favor, ensinem-me!

Fala-se na hipótese de haver uma inspeção às nossas avaliações, por receio de que, dominados por uma qualquer loucura inesperada, tenhamos perdido o sentido de responsabilidade e de justiça no momento de dar a nota do terceiro período. Vamos lá a ver se nos entendemos! Não, não iremos prejudicar ninguém por não ter estado presente em todas as aulas ou por ter falhado a entrega de uma determinada tarefa. Como também não iremos inflacionar resultados, movidos por um súbito espírito solidário para com os nossos alunos e respetivas famílias. Antes do terceiro período, existiram outros dois, ao longo dos quais ensinámos e aprendemos, avaliando dia a dia o desempenho dos nossos alunos, numa perspetiva formativa primeiro, e classificativa depois. Ao longo destes dois meses de ensino através de plataformas digitais, creio ter sido possível verificar a maior ou menor autonomia, organização e responsabilidade de uns em relação a outros, o cumprimento de tarefas e de prazos, a motivação para participar nas sessões online ou o seu oposto e, por último, a criatividade que algunsalunos revelaram perante propostas de atividades a realizar de formas menosortodoxas. Mais do que isso, duvido.

Em suma, tal como se lê no documento governamental, a nota final do ano deve atender ao conhecimento que o professor tem do trabalho realizado por cada aluno ao longo do ano, tendo em conta as circunstâncias específicas. Por isso, as notas que iremos dar aos nossos alunos serão as que resultarem do nosso honesto e rigoroso processo de avaliação, atribuindo o devido valor às diferentes tarefas propostas e realizadas, assim como à motivação, à autonomia, à capacidade de reflexão, ao empenho e à responsabilidade de cada um, através de instrumentos previamente selecionados, obviamente adaptados ao novo contexto em que nos encontramos mas no qual continuam a existir, como já sucedia antes da pandemia, alunos responsáveis, curiosos, assíduos, aplicados e honestos e outros que o não são.

 

Fonte: Visão