Agora que as dificuldades que alguns dos nossos alunos irão ter em acompanhar de forma consistente o ensino à distância (por inúmeras circunstâncias, desde a falta de recursos físicos, à incapacidade de os pais os ajudarem) estão mais que sinalizadas, lembrei-me de muitas das crianças com as quais tenho convivido ao longo dos anos a lecionar nesta escola.
E fico preocupada… não pela falta de computador ou internet, se os trabalhos vão por email ou pelos CTT, ou por os pais não serem capazes de os acompanhar convenientemente nas suas aprendizagens, mas sim porque a Escola, muitas vezes o seu porto seguro, vai estar encerrada por mais alguns meses. E eles vão estar desprotegidos, pelas ruas do bairro, a assistir a rusgas e desavenças, sem terem com quem partilhar no dia seguinte as suas angústias e perguntas. Sei que muitas vezes somos a sua âncora, estamos diariamente com eles; é onde descarregam as suas frustrações, a sua revolta e celebram as suas alegrias (o familiar que foi preso, ou o que saiu). Até para muitas das famílias, por sermos de fora do bairro, somos confidentes ou culpados pelo que de mal lhes acontece.
Tenho visto muitos destes alunos perderem-se quando chegam ao segundo ciclo; não têm a mesma proximidade que tinham com o professor que foi deles durante quatro anos, misturam-se com alunos oriundos de outras escolas/ meios, com outras vivências com as quais eles nem sonham, e aí o espírito de proteção de quem é do bairro torna-se mais marcado, juntam-se em grupos, arranjam confusões, são suspensos… O gozo, a provocação, a agressão, são a sua forma de defesa e a sua promoção no meio, a forma de se evidenciarem.
E lembrei-me de um dos alunos que até hoje mais me marcou…uma história de vida triste, pai alcoólico, com tudo o que isso acarreta, mãe que falece quando ele tem sete anos. Com alguma dificuldade faz o quarto ano, já com doze anos. O segundo ciclo não corre bem e volta para a antiga escola para frequentar uma turma PIEF; mas mesmo aí não se adapta… A Escola Segura é chamada com frequência, mas nem isso o intimida; a única coisa que diz é “Vão chamar a minha professora senão não falo com ninguém”…E eu lá ia, deixava a minha turma, acalmava-o, falava com ele, ralhava, abraçava-o e ele saía com a polícia. Um dia, com catorze anos, vem ter comigo com um grande sorriso “Professora, vai ser avó! Vou ser pai!” E o coração caiu-me aos pés… Passado dois anos foi institucionalizado; assim que saiu, com 18 anos, foi à minha procura com um sorriso enorme “Ainda bem que ainda cá está!” e deu-me um abraço como quando era criança. Hoje em dia, com vinte e cinco anos e mesmo depois de já ter estado preso duas vezes, continua a ir à escola ver a sua professora, buscar o seu abraço… e contar que vai ser pai novamente.
Como este aluno há muitos outros, que são os nossos filhos do coração, que vão precisar de nós e nós não vamos lá estar… e é por isso que me preocupo.