Perito da organização encarregado de vigiar e controlar as ameaças para a saúde dos europeus, o italiano Bruno Ciancio tem uma certeza: nunca vamos estar totalmente preparados para os ataques da Natureza e o que é verdade num momento pode deixar de o ser logo a seguir. Ao contrário do que aconteceu há seis meses, agora parece assente que o confinamento deve ser a última opção. O responsável do ECDC garante que o foco na covid-19 não fez aumentar as mortes por outras doenças, está preocupado com as sequelas deixadas pelo vírus nos doentes ligeiros e assegura que as crianças com sintomas, sobretudo as mais pequenas, transmitem o vírus até mais do que os adultos.
As infeções na Europa já atingem os números de março. Estima que a segunda onda pandémica seja maior do que a primeira?
O número de casos reportados é maior do que em março e abril, mas são situações muito diferentes. Agora o número está mais próximo da realidade, porque estamos a testar mais e a detetar onde ocorre a infeção, e o impacto é muito menor graças à forma como estamos a conseguir lidar com a doença. Todos os países estão a fazer o melhor para proteger os mais vulneráveis, e as medidas têm resultado, mas com o aumento da transmissão torna-se mais desafiante e complexo proteger essa população.
A Organização Mundial da Saúde prevê uma subida das mortes na Europa entre outubro e novembro. Até onde pode ir esse aumento?
Neste momento, não esperamos um crescimento rápido da mortalidade nem um grande impacto no futuro. Embora ninguém possa prever o que virá a acontecer…
Muitos países europeus, incluindo Portugal, registam um excesso de mortalidade que não é explicado pela pandemia. Esse excesso é atribuível ao vírus ou ocorre noutras doenças e é um efeito colateral do foco dos hospitais na covid?
É uma pergunta pertinente. O que sabemos é que o excesso de mortalidade em muitos países em março, abril e maio coincide com o aumento da mortalidade associada à covid-19, no entanto, parte dessa mortalidade não foi atribuída à infeção e é importante que as mortes sejam devidamente reportadas. Há orientações sobre como isso deve ser feito. Neste momento, e se compararmos o histórico, o sistema europeu que monitoriza a mortalidade não deteta nenhum excesso de mortes na Europa. Portugal é membro desse sistema, e não há nenhum sinal de mortalidade excessiva por todas as causas nesta fase. Continuamos a monitorizar, porque queremos ver o que vai acontecer com a cocirculação de outros vírus respiratórios, já que é habitual um aumento da mortalidade por gripe.
As crianças transmitem o vírus mais ativamente quando são mais pequenas, até aos 4 anos
Acredita que vai haver um tratamento eficaz ainda este ano?
Uma parte da diminuição da mortalidade a que estamos assistir deve-se ao que aprendemos no tratamento dos doentes. Há muita investigação em curso, mas não temos conhecimento de qualquer registo para um novo tratamento antiviral em breve.
O que já se sabe sobre as sequelas da doença? São permanentes?
Não passou tempo suficiente para dizer se há ou não sequelas permanentes. Os indivíduos que sofreram doença severa e que foram ventilados durante muitos dias podem vir a ter uma recuperação muito longa, com lesões permanentes da função respiratória, mas não sabemos o que acontece a quem teve uma infeção ligeira. Vamos ter de esperar pelos resultados dos estudos. Este vírus afeta múltiplos órgãos e sistemas com uma patogenicidade complexa e, por isso, é possível que fiquem com várias sequelas.
A Suécia é dos poucos países europeus onde as novas infeções não estão a aumentar. A sua estratégia está a provar ser mais eficaz?
A Suécia não está sozinha em termos da situação epidemiológica. Acreditamos que a eficácia das medidas contra o vírus depende de vários fatores, desde o cumprimento das regras pela população à concentração populacional nas cidades, aos hábitos culturais, etc. A verdade é que todos mudámos o nosso comportamento por força da pandemia, e isso faz com que seja mais complexo perceber como é que as medidas funcionam, já que todos os países mudaram, de facto, a sua normalidade.
Não há nenhum sinal de mortalidade excessiva por todas as causas nesta fase em Portugal
Por toda a Europa, as escolas estão este mês a reabrir. Quão perigosa é esta reabertura para o controlo da pandemia?
Essa é uma dúvida habitual. Na Europa têm existido pouquíssimos surtos em meio escolar. Quando a covid-19 foi detetada em crianças e foram seguidos os contactos, nenhum adulto desse surto acabou contaminado durante o período de vigilância. A conclusão que podemos tirar é que as crianças não são os condutores primários da transmissão a adultos no contexto escolar. A evidência disponível sugere que a transmissão entre crianças em meio escolar é menos eficiente para a covid-19 do que para outros vírus respiratórios, como o influenza [gripe]. Ainda assim, a evidência também mostra que as crianças infetadas e que têm sintomas transmitem o vírus tal como os adultos. Aliás, a maior transmissibilidade é dos zero aos 4 anos, quando passam uma carga viral maior do que as restantes crianças e até do que os adultos. Ou seja, as crianças transmitem o vírus mais ativamente quando são mais pequenas. Mas quase não há mortalidade entre crianças — é de 0,003% —, e a grande maioria tem uma infeção muito ligeira ou sem sintomas. Os nossos dados mostram que menos de 5% de todos os casos na União Europeia são entre crianças e, no geral, só cerca de 16% são sintomáticas.
Se as crianças mais pequenas podem ser grandes transmissores, por que motivo não devem usar máscara?
As crianças mais pequenas têm uma menor tolerância e capacidade para usar corretamente a máscara e, por isso, nas escolas básicas a máscara é recomendada para os adultos quando o distanciamento físico não pode ser garantido. O uso de máscara deve ser visto como medida complementar e não como medida isolada. Distanciamento físico, etiqueta respiratória, higiene das mãos e ficar em casa quando se está doente continuam a ser intervenções importantes, independentemente da máscara.
E as crianças são ou não um perigo para os avós e para pessoas de risco?
O perigo depende da situação epidemiológica. Se existe uma grande transmissão comunitária, as crianças podem ser infetadas e devem evitar o contacto com as pessoas idosas. E isto é válido também para os adultos. Contudo, este afastamento deve ser equilibrado, para assegurar que os idosos têm o apoio social de que precisam da família e dos amigos. Proteção não é isolamento.
Os confinamentos não são mais eficazes do que as outras medidas de proteção
O momento atual, com o regresso às escolas e ao trabalho, é o mais perigoso desde o início da pandemia?
É um momento importante. Em muitos países não se verifica um aumento da mortalidade nem das hospitalizações. Está-se a monitorizar a infeção, e isto é extremamente bom. É o momento para travar a transmissão entre os mais jovens, por exemplo mantendo os contactos sempre com as mesmas pessoas, de forma a criar uma bolha social. Já se provou que é uma estratégica capaz de conter o vírus.
A Europa pode voltar ao confinamento, como no início da pandemia?
O confinamento é uma medida de último recurso. Tem um impacto muito grande e não existe evidência de que seja mais eficaz do que outras medidas, que se forem cumpridas podem ser igualmente eficazes. O que admitimos é que possam existir confinamentos muito específicos em caso de grande pressão sobre os hospitais, mas não podemos comparar o momento atual com o início da pandemia, quando tentávamos eliminar o vírus. Nessa altura, a estratégia era evitar que o vírus chegasse à Europa e depois contê-lo nas áreas onde chegou primeiro. O objetivo agora é identificar rapidamente quem está infetado, em que circunstâncias e em que contexto. O mais importante é ter informação detalhada para direcionar as medidas para alvos concretos.
A covid-19 tem agora uma mortalidade relativamente baixa. Os alarmes e o confinamento de milhões de pessoas levaram a um pânico coletivo injustificado?
Tem uma mortalidade reduzida agora porque está a circular maioritariamente entre os mais jovens, mas no início não foi assim. É um vírus que se espalhou rapidamente por todo o mundo e que obviamente teve muita atenção. Para os jornalistas é um desafio: passar a mensagem certa sem criar alarmismo.
Podemos dizer que o novo coronavírus é mais perigoso do que a gripe?
Sim. Para o influenza há vacina, antivirais e é bem conhecido. É verdade que a gripe continua a causar uma mortalidade significativa, particularmente em crianças, e essa é uma das principais diferenças face à covid-19.
Que lição é que devemos tirar desta pandemia?
Que temos de reforçar os sistemas de vigilância para sermos capazes de detetar um vírus assim que emerge e preparar a sociedade e os sistemas de saúde para a eventualidade de uma pandemia. O que temos vindo a fazer é pouco. Mas é claro que nunca vamos estar totalmente preparados.
VERA LÚCIA ARREIGOSO