Há dois meses que creches, jardins de infância e escolas estão de portas fechadas e que crianças brincam e aprendem em casa, afastadas dos colegas e amigos. Agora, a 24 horas da reabertura parcial de algumas destas instituições, há uma nova ansiedade no ar, como se o regresso ao normal é que se tivesse transformado em algo de estranho, pouco natural e feito a medo.
São os efeitos de uma situação nunca antes vivida. Mas se há característica comum às crianças é a sua “capacidade de adaptação”, tranquiliza o pediatra Carlos Gil Escobar. Os pais podem dar uma ajuda, fazendo desde já uma preparação para esse regresso, já na segunda-feira, ou dentro de duas semanas, quando creches e jardins de infância estiverem todos abertos.
Para já, são apenas as instituições para crianças até aos três anos que vão poder funcionar, num regresso que se efetuará ainda a meio gás. Entre pais que preferem e que podem ficar mais tempo com os filhos em casa, os que não têm onde deixar os irmãos mais velhos e que, por isso, ficam todos sem ir e os que têm medo de deixar as crianças regressar já à escola, as salas não deverão voltar a estar cheias. Nem podiam, de acordo com as orientações da Direção-Geral da Saúde divulgadas esta semana.
A ideia é que haja uma redução de crianças por sala, de forma a que seja “maximizado o distanciamento entre as mesmas, sem comprometer o normal funcionamento das atividades lúdico-pedagógicas”.
Entre rotinas apertadas de lavagem das mãos, desinfeção dos espaços, utilização dos brinquedos (que não deverão ser trazidos de casa), rituais da sesta adaptados, com pés alternados com cabeça, e adultos de máscara, os espaços a que as crianças irão voltar serão também diferentes. E essas diferenças devem ser antecipadas e explicadas.
A reabertura das escolas é acompanhada por uma nova ansiedade, como se o regresso ao normal fosse estranho, pouco natural e feito a medo
“Será um processo de adaptação e os pais podem ajudar”, sugere Carlos Gil Escobar, membro da secção de pediatria social da Sociedade Portuguesa de Pediatria. Ele próprio pai de uma criança de dois anos e médico num hospital da Grande Lisboa, passou a chegar a casa de máscara posta. “Os miúdos mais pequenos, de dois, três anos, precisam de ver a face humana para perceber os sorrisos e até as zangas A partir dessa idade já têm maior perceção da comunicação verbal. Temos de explicar que estamos de máscara porque não queremos ficar doentes ou que outros fiquem. Tem de se relativizar a sua utilização.”
Também Augusto Carreira, psiquiatra da infância e da adolescência, acredita que se deve explicar às crianças o que se passa de forma adaptada à sua faixa etária. Transmitindo a ideia de que esta é um fase transitória e dando sempre uma “perspetiva de futuro”. As educadoras das creches têm também aqui um papel importante, defende.
“Há dois meses tivemos de explicar porque tínhamos de ficar em casa. Agora temos de assumir o mesmo papel pedagógico para explicar que temos de regressar à situação anterior, mas com algumas diferenças”, diz Carlos Gil Escobar. E assim como se “normalizou” a situação atual, recorrendo, por exemplo, a videochamadas para manter rotinas de socialização, também as novas regras vão ser apreendidas, confia.
O MEDO E AS INCERTEZAS
Sobre os receios dos pais, o pediatra lembra que as crianças não estão no grupo de risco e que, por regra, não desenvolvem sintomas graves da doença — apenas 1,7% dos casos positivos (com ou sem sintomas) correspondem à faixa etária dos 0-9 anos e não houve até agora nenhuma morte abaixo dos 40 —, e que as orientações da Direção-Geral da Saúde seguem a “melhor evidência científica”. No entanto, sublinha, a decisão deverá ser sempre tomada no “melhor interesse das crianças”, sendo certo que é “desejável que volte a haver uma normalização da socialização das crianças, que em Portugal é muitas vezes feita através das creches”.
A novidade do vírus não permite respostas definitivas, admite Augusto Carreira. “Desafio alguém a dizer que tem certezas ou que sabe que este é o caminho certo. Estamos todos a tatear e temos de ter a humildade de o assumir. Dito isto, temos de nos basear o mais possível na ciência e exigir às instituições o cumprimento rigoroso das medidas de segurança e higiene. Na minha opinião, não faz sentido que os filhos continuem a ficar em casa com os pais.”
Sobre o período de confinamento e o impacto nos mais novos, o psiquiatra salvaguarda que a variedade de condições prévias — desde as características da criança à estrutura familiar, passando pelo espaço da casa — influencia muito a forma como estes dois meses foram vividos. Ainda mais se durante este período o pai ou a mãe foi afetado por desemprego ou perda de rendimentos. Tal como na crise de 2008, haverá impactos a longo prazo que serão sentidos pelas famílias, avisa Augusto Carreira. E as crianças que já antes tinham problemas na socialização serão aquelas com maior dificuldade no regresso. “As outras até podem ter tido alguns comportamentos regressivos a partir do momento em que o contacto com o mundo exterior quase desapareceu. Mas rapidamente vão retomar o seu caminho.”
Mas a verdade é que se ninguém contesta a reabertura de lojas, restaurantes e museus, a entrada em funcionamento das escolas divide a sociedade. Há petições assinadas por alguns milhares de pessoas argumentando que creches, jardins de infância e atividades de tempos livres não deveriam abrir até setembro. Os subscritores argumentam que nestas idades não é possível cumprir as regras de distanciamento e etiqueta respiratória recomendadas e por isso funcionarão como focos de contágio. O problema é que em setembro o novo coronavírus continuará com grande probabilidade a circular, sem que haja uma vacina no mercado e um tratamento eficaz.
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Fonte: Expresso