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Como chegámos aqui? – Paulo Guinote

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Na minha canção pop favorita de sempre, logo no final da primeira estrofe, o David Byrne perguntava, “Bem… como cheguei aqui?” E logo a seguir dava a resposta “deixando os dias passar, deixando a água prender-me”. Ou o que preferirmos entender por hold me down.

Mais de 40 anos depois, regresso a uma questão que ganha crescente urgência perante a evolução do que nos rodeia. Como deixámos que a situação chegasse a este estado? Como foi que chegámos aqui, tão parecidos, no pior, ao que sempre fomos? Como é que Portugal, em 2024, parece não ser muito diferente, nas suas peculiaridades e idiossincrasias, do que era em 1867?

Porque se sente este travo amargo de fracasso, de “inconseguimento” colectivo, na novilíngua do nosso politiquês, por muito que o tema recorra e motive algumas das prosas mais lúcidas dos nossos cronistas dos últimos 200 anos, para não estendermos o olhar mais longe, que os lamentos sobre o destino nacional remontam ao escassear das pimentas e outras drogas orientais, regressando sempre que não chovem lingotes e diamantes do Brasil ou subsídios a fundo perdido de uma Europa que tem sido pródiga em nos alimentar o vício do artifício.

A citação é longa, mas o que o jovem Eça escreveu pode ser parafraseado, mas dificilmente ultrapassado:
“A ciência de governar é neste país uma habilidade, uma rotina de acaso, diversamente influenciada pela paixão, pela inveja, pela intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse.

A política é uma arma, em todos os pontos revolta pelas vontades contraditórias; ali dominam as más paixões; ali luta-se pela avidez do ganho ou pelo gozo da vaidade; ali há a postergação dos princípios e o desprezo dos sentimentos; ali há a abdicação de tudo o que o homem tem na alma de nobre, de generoso, de grande, de racional e de justo; em volta daquela arena enxameiam os aventureiros inteligentes, os grandes vaidosos, os especuladores ásperos; há a tristeza e a miséria; dentro há a corrupção, o patrono, o privilégio.” (Distrito de Évora, 2 de Junho 1867)

Até que ponto deixámos os dias passar e a água travar-nos, afundar-nos, permitindo que as coisas acontecessem como foram acontecendo, mais ou menos protesto epidérmico ou comoção instantânea, de dissolução tão rápida quanto a indignação?

É nossa a responsabilidade – individualmente ou como comunidade mais ou menos alargada – por termos uma sociedade parcialmente falhada, uma economia capturada por interesses de olhos no orçamento e nas verbas europeias, uma vida política que sentimos maculada, sem que se veja forma de a regenerar, meio século depois da instauração de uma Esperança que se desejou plural?

Podemos desculpabilizar-nos, indo na corrente, alimentada com generosidade por uma classe política que se justifica sempre com o exógeno e nunca com a própria mediocridade, alegando que não havia outra maneira de sermos? Podemo limitar-nos a identificar a doença e os sintomas, aventando remédios que não temos a coragem de engolir, que a goela é estreita e pode doer?

Até que ponto a ritualização da Democracia deixou espaço para ser de outro modo? Até que ponto a captura da Educação por passageiras modas ou decrépitos dogmas e o apagamento da História impossibilitaram que a maioria da população se elevasse para além da mera certificação académica? Até que ponto nos deixámos seduzir pela auto-imagem do país que acaba por se desenrascar nos piores momentos, melhor ou pior, mito falso, mas útil, tradição construída sobre episódios anedóticos que se tomam pelo todo, mas que nos submergiu numa das mais longas ditaduras do século XX, nascida dessa apatia confortável de nos deixarmos ficar a ver a água e o tempo correrem?

Time isn’t holding up,
time isn’t after us
Same as it ever was,
same as it ever was
Same as it ever was,
same as it ever was

Talking Heads,
Once in a Lifetime, 1981

Professor do Ensino Básico

DN