No final de maio, estive em Londres numa conferência científica na qual um dos oradores convidados era Stephen Manchin, da London School of Economics. Manchin apresentou o seu trabalho recente com colegas da LSE, que mostra como a perda de competências dos alunos mais desfavorecidos causada pela pandemia vai afetar a mobilidade social. Pré-pandemia, estimam que no Reino Unido um aumento de 10% do rendimento da respetiva família origina um aumento no rendimento do filho, quando adulto, de 3,8%. Pós-pandemia, esta medida de transmissão intergeracional de rendimento aumenta em mais de 11%, o que acentua as desigualdades. Os autores avisam: são necessárias políticas radicais (leu bem: radicais!) para sarar as cicatrizes que a pandemia deixou nesta geração.
Outro trabalho recente, “The Consequences of Remote and Hybrid Instruction During the Pandemic”, analisou os resultados de mais de dois milhões de alunos de dez mil escolas básicas. Como as escolas americanas não voltaram ao ensino presencial simultaneamente, é possível analisar o impacto de maiores períodos de ensino remoto. Nas escolas que encerraram apenas no início da pandemia, os alunos perderam o equivalente a dez semanas de ensino, isto é, as suas competências estão dez semanas atrasadas em relação às dos jovens do mesmo ano escolar entre 2017 e 2019. E não há diferenças significativas entre populações mais pobres e restantes. Já nas escolas que ficaram em ensino remoto durante mais de metade de 2021, o atraso nas competências é de 13 semanas nas que servem uma população menos pobre, e de 22 semanas naquelas em que pelo menos três quartos dos alunos qualificam para refeições escolares gratuitas.
A melhor prova dos péssimos resultados do ensino remoto vem do país que teve coragem para não encerrar as escolas básicas. Podia ser que o stress da pandemia ou as faltas (a Suécia tinha recomendações claras para isolamento no caso de sintomas ligeiros) gerassem efeitos negativos – mas não. O artigo “No learning loss in Sweden during the pandemic: evidence from primary school reading assessments” mostra que não houve perdas de competência de leitura e que os alunos de meios socioeconómicos desfavorecidos não foram especialmente afetados, usando resultados de quase 100 mil alunos do primeiro ao terceiro ano.
No meio de tanta evidência sólida sobre o desastre do ensino remoto, o país no canto da Europa que, segundo a OCDE, está no topo da tabela de período de encerramento de escolas básicas, parece viver numa realidade paralela. Senão, vejamos.
Em primeiro lugar, falta-nos evidência. Os testes realizados pelo Governo em janeiro de 2021 não permitem comparações com resultados pré-pandemia. As provas de aferição do ano passado mostravam perdas de competências substanciais relativamente às de 2019 e 2018, como eu aqui escrevi e Pedro Freitas escreveu no Observador, em outubro passado. Infelizmente, os dados disponibilizados não permitem comparar perdas de aprendizagens entre alunos de diferentes meios socioeconómicos. Recordo, no entanto, que no relatório “Crianças em Portugal e Ensino a Distância: um retrato”, que publiquei com Bruno P. Carvalho, Mariana Esteves, Pedro Freitas e Miguel Herdade, documentávamos enormes disparidades de resultados nos exames nacionais e provas de aferição mesmo antes da pandemia. Portanto, parafraseando o secretário-geral das Nações Unidas, é fazer as contas.
Em segundo lugar, foi publicado o primeiro relatório de monitorização do Plano 21/23 Escola+. O site da Secretaria-Geral da Educação e Ciência informa-nos pomposamente que a “implementação do plano de recuperação das aprendizagens” é “superior a 80%”. Assim, à primeira, imaginei que 80% das perdas de aprendizagens foram recuperadas. Mas, vendo com mais detalhe, o próprio documento explica que não mede os resultados nas aprendizagens. Será que mede horas de intervenção de professoras, tutoras, psicólogas, nas escolas? Ou até, sendo menos exigente, a parte do orçamento já gasto? É comum dividir as políticas públicas nestas três dimensões (input – euros, output – horas de trabalho, outcome – resultados escolares). Mas, infelizmente, os 80% não se referem a nenhum destes, nem o relatório menciona despesa, horas de intervenção ou competências adquiridas (ou por adquirir) em momento algum.
O estrondoso sucesso de 80% resulta de um inquérito conduzido junto das escolas “com o objetivo de monitorizar quais as ações específicas que já se encontram mobilizadas”. Exemplos de ações: “escola a ler”, “diário de escritas”, “turmas dinâmicas”, “avançar recuperando”, “aprender integrando”. Todas têm certamente vantagens várias, mas sem mais detalhe é difícil perceber quais. Algumas, como o rastreio visual e auditivo, são essenciais, mas não têm nada a ver com as perdas de aprendizagem ligadas à pandemia. Acresce que a adoção reportada é ao nível da escola, por isso nem sequer mede a percentagem de alunos cobertos. E também não sabemos se a ajuda está a chegar onde é precisa, isto é, se as escolas com mais perdas de aprendizagem estão entre as que mais medidas adotam. Para quê, então, a congratulação pelos 80%? Só se for para nos fazer esquecer os estragos.
Em terceiro lugar, o relatório “Resultados escolares: sucesso e equidade”, publicado em maio, foi recebido com júbilo. De facto, a percentagem de alunos que conclui cada ciclo de ensino no tempo esperado (sem reprovações) tem vindo a aumentar desde 2018, mas os resultados têm um problema. É que a maior parte do aumento está concentrada entre 2019 e 2020. Das progressões de 6 e 10 pontos percentuais entre 2018 e 2020 observadas no terceiro ciclo do ensino básico e no secundário, o último ano é responsável por, respetivamente, 5 e 7 pontos percentuais. A percentagem de beneficiários de ação social escolar que concluíram os ciclos de ensino sem reprovações também aumentou 8 e 10 pontos percentuais, para o terceiro ciclo do básico e o secundário, entre 2018 e 2020, dos quais sete pontos no último ano.
Thomas Kane, do Center for Education Policy da Universidade de Harvard, um dos co-autores do estudo norte-americano, avisou numa entrevista: “eu sei que toda a gente está impaciente para regressar ao normal, mas espero que reconheçam que normal não vai ser suficiente”. E, mais à frente, afirma: “o meu sentimento – o meu medo – é que as pessoas estão a subestimar a escala do esforço que vai ser necessário para ajudar os alunos a recuperar.” Felizmente, por cá não temos de nos preocupar. Com 80% da recuperação implementada e com o sucesso escolar de 2020, podemos ir de férias descansados.
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico