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As escolas que continuaram – e continuam – abertas durante o confinamento geral

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O primeiro-ministro determinou o fecho de todas as escolas, de todos os níveis de ensino, a 22 de janeiro. Todas, todas, não. A São Vicente, no bairro lisboeta de Telheiras, por exemplo, mantém-se de portão aberto, assim como outras 700 no resto do território. E o silêncio dos seus enormes corredores labirínticos interrompe-se apenas com a música que uma auxiliar teima em ligar enquanto despacha a limpeza geral das salas de aula vazias, por entre baldes, esfregonas e pás. No espaço dedicado à ocupação de tempos livres está um par de meninos da antiga 4ª classe, ambos com 9 anos, e por coincidência da mesma turma, a jogar UNO com um par de monitores. Àquela hora, final da manhã, já fizeram manualidades, como nos contam, entusiasmados, e andaram lá fora a correr para conseguir ganhar ao mata até a chuva os obrigar a entrar na sala. Mesmo assim, até porque a intensidade da água não é muita, a porta fica aberta à custa da força de um banco, e as cartas, plastificadas, hão de ser desinfetadas, uma a uma, quando o jogo acabar, por Sandro Costa, 29 anos, habituadíssimo a esta tarefa.

Enquanto ele espalha o baralho sobre a bancada, a lavagem de mãos é supervisionada por Érica Fernandes, 24 anos, e os meninos irão com eles até ao refeitório para almoçar. Daqui a nada, muda o turno e vêm outras duas monitoras para os entreterem e os ajudarem nos trabalhos de casa até os pais, fisioterapeuta, farmacêutico e médicos, conseguirem vir buscá-los. Podem fazê-lo até às sete da tarde, mas não conseguem deixá-los antes das oito da manhã, que a escola só abre a essa hora.

E os meninos especiais?
A única criança da unidade de autismo que cá está hoje já comeu e regressou para a sala onde passará os dias úteis deste confinamento, rodeada de jogos e de outros mecanismos de estímulo indispensáveis à sua doença. Pode aqui ficar até às três e meia, o que representará um enorme alívio para os pais, que em março e abril não tiveram mesmo onde a deixar, amargura que partilharam com todos os outros cuidadores de alunos que necessitam de medidas adicionais e que não seguem o currículo escolar. “Vêm para cá essencialmente para estar com os seus pares”, explica Gorete Barros, 39 anos, professora do ensino especial e bastante agradada com esta inclusão nas escolas de acolhimento. Além das vantagens relacionais, as terapias a que são sujeitos, como a da fala ou a da motricidade, mantêm-se por estes dias, com os técnicos a virem às escolas apesar do confinamento quase geral. “Eles têm de sentir o seu dia estruturado, para poderem antecipar o que vão fazer e organizarem-se”, completa a professora que hoje se ocupa do único aluno que aqui está. Amanhã juntar-se-á outro. No Agrupamento Vergílio Ferreira todos os centros de apoio a estas crianças estão abertos, mesmo que não estejam na escola de acolhimento.

Voltemos ao refeitório, onde a cozinheira Nália, 55 anos, está de volta dos tachos, a aquecer a sopa, as almôndegas e o esparguete que há de servir aos dois colegas do 4º ano. Sem esquecer de lhes dar uma peça de fruta, maçã ou laranja. Costuma cozinhar para mais de 200 meninos, mas hoje usou apenas quatro pacotes de massa, numa cozinha demasiado grande para tão pouco movimento. Além das duas crianças que são servidas pelos monitores no refeitório quase vazio, há os oito alunos dos escalões A e B (com menos recursos) que vêm à porta da escola levantar a refeição e ainda levam um iogurte para o lanche. “Hoje não veio pão?”, admira-se Dulce Lopes, 54 anos, coordenadora da escola. Amanhã é outro dia, que a gestão agora faz-se assim, a cada minuto que passa.

Almoço em modo delivery
No segundo dia em que as duas escolas de acolhimento do concelho de Almeirim estão abertas, só há um aluno para receber. Mas a azáfama no Centro Escolar dos Charcos, um pré-escolar e primeiro ciclo, é enorme a meio da manhã. Dona Maria, como a tratam, tem 62 anos e muitos deles foram passados na cozinha desta escola. Agora tem de chegar aqui pelas seis da manhã ou não conseguirá dar vazão às cerca de 200 refeições (têm aumentado todos os dias) que daqui saem para serem distribuídas porta a porta pelos meninos que têm direito a elas e para que não saiam de suas casas. Nem é pela quantidade, pois já costuma confecionar 600 almoços por dia, é pelo tempo que leva a embalar o prato com massa e hambúrguer e a sopa. A fruta também se mete em sacos e, felizmente, o pão vem embalado.

Quando vierem mais alunos para a escola – neste momento estão 15 pedidos a ser analisados, a ver se os pais são mesmo essenciais e se estão ambos a trabalhar fora de casa –, ainda haverá de servir esses almoços na cantina.

Passam alguns minutos das onze, quando a meia dúzia de monitoras do município, rigorosamente protegidas com o seu equipamento de proteção individual (luvas, bata, avental, duas máscaras, touca e viseira), saem da escola com as caixas de esferovite que acomodam as refeições nos braços. “Bom trabalho!”, ouvem dos colegas que ficam em terra, antes de arrumarem a carga nas cinco carrinhas que irão distribuir porta a porta os almoços aos alunos dos escalões A e B, desde o pré-escolar ao secundário. Aliás, a primeira paragem há de ser numa escola secundária para apanhar mais algumas refeições que foram ali feitas (em vez de hambúrgueres, há almôndegas, para não divergir muito, pois em muitos casos vão parar às mesmas casas). Ontem, dia de peixe, houve douradinhos com arroz para todos.

“Chega-te um bocadinho para trás”
A carrinha conduzida por Moisés Rego, 44 anos, há de parar mais de 50 vezes para que Susana Gonçalves, 43 anos, e Luísa Centeio, 39, saiam, uma da frente, outra de trás, para entregar as embalagens com a comida aos 94 meninos que vivem na cidade (os restantes veículos vão para outras freguesias). Algumas pessoas já têm os sacos pendurados nas portas e isso é o ideal para minimizar o contacto delas com os beneficiários, embora os conheçam quase todos do tempo em que os entretinham com atividades, nas escolas.

Quando saltam da carrinha, batem às portas, e entretanto vão à bagageira arrumar as refeições que devem ser entregues em cada casa. Às vezes, assomam-se uns olhos mais curiosos pela frincha da porta, noutras há acenos da janela lá de cima, mas nunca faltam cumprimentos de “bom dia” e “até amanhã”, mesmo que a muita distância e que não haja toques de espécie alguma (“Chega-te só um bocadinho para trás, está bem?”). Susana e Luísa regressam aos seus lugares, mas antes passam as mãos por desinfetante – de todas as vezes que param, o cerimonial repete-se.

Se a porta não se abrir, ligam para o número de contacto e a situação acaba por se resolver. E nem a chuva desanima este trio dinâmico. São uma equipa com alguma cumplicidade, pois já andaram todos a fazer isto no confinamento passado. Por isso, já sabem: quando regressarem ao ponto de partida, arrumam as caixas, atiram o equipamento de proteção para o lixo, vão para casa e tomam banho. “E depois, vou respirar”, remata Luísa, já a pensar que tem de ganhar fôlego, porque amanhã o dia será igual.

 

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