Pergunta um conceituado e reputado professor do nível de Ensino Superior num conceituado e reputado jornal se “o Governo, face à idêntica falta médicos, decretava que, para atrair mais candidatos à profissão e à sua formação prévia, eram suficientes 90 ECTS (…)” – e é aqui que abrimos o parêntesis para destacar que, em seguida, até esclarece o que são “90 ECTS”, acaso algum incauto passe por ali os olhos a correr – “… (ou ano e meio de uma licenciatura) de um curso de Medicina). A sociedade portuguesa aceitaria tal decisão?”. Mas o professor Ceia não se fica por aqui e acredita que conhece a resposta, uma vez que em seguida responde à própria questão que levantou, afirmando (aparentemente) sem sombra de dúvida “Claro que não!”.
Da sociedade cega
A sociedade portuguesa é o sujeito deste texto. Não se debaterá hoje sobre Educação, Saúde, Justiça, Segurança ou qualquer outra área, uma vez que o foco é a sociedade portuguesa.
O que é, afinal de contas, a sociedade portuguesa, neste caso? Bem, depende da perspetiva: para um professor seria o aluno, sobre quem se centra o foco da aprendizagem; para um médico seria o paciente, doente, a carecer de cuidados – porque é aos médicos que recorremos quando sentimos dor e a quem quase entregamos e prometemos tudo o que não temos por uma esmola de ajuda; para um oficial de justiça é alguém que foi ofendido e que precisa que seja reposta a verdade e a equidade na sua vida; para um Polícia, a sociedade será uma vítima a precisar de proteção.
Ora bem, os pilares da casa começam a ceder, uma vez que o Senhor Senhorio não investe nas obras da mesma – e não, não estou a ser irónica, escrever um texto sobre um setor que é tão “caro” {desvalorize-se metáfora} à sociedade nos dias de hoje e particularmente hoje, no dia 5 de outubro! – os habitantes recebem cartas, imensas! Ignoram, não têm dinheiro para mais e a inflação está a matar qualquer possibilidade de sair à rua, até porque os transportes estão caros e se pararem comer um qualquer pastel de nata sentir-se-ão assaltados, mais vale pagar as contas e guardar o pouco dinheiro que há, é que a Senhora Banca pode resolver continuar a aumentar os juros das casas e qualquer cêntimo fará a diferença. Além disso, têm a certeza que tantos são os habitantes da casa e de tantas nacionalidades, que alguém haverá de representá-los. Bateram-se milhares de pessoas pela habitação, pela renda da casa, aplaude-se! Afinal não foram apenas umas centenas, mas “não há cerca de 11 milhões de habitantes em Portugal?”. Entretanto, enquanto discutem a inflação e a renda da casa, os inquilinos não ouviram o crepitar dos pilares, que antecipam em surdina que a tragédia e o colapso habitacional poderão ser o menor dos problemas. E foi um pequeno problema até a casa ruir.
A sociedade morreu efetivamente. Já há muito estava morta e o não sabia.
Não compreendeu ou não quis compreender; não ouviu ou não quis ouvir; não leu ou não quis ler. Não soube ler.
Ouviu dizer no telejornal, na pessoa dos Senhores Senhorios da Educação que este ano é que ia “ser um ano tranquilo nas escolas, que haveria condições”, que os professores estavam a ser contratados, que 98% dos alunos tinham professores. Os professores estavam na rua, mas era só porque são pessoas a quem a sensatez virou as costas e agora habituaram-se a deixar amigos e família para irem conviver em manifestações. Alertaram para “portas abertas” a professores sem preparação para o ser (seja por falta de formação, seja por falta de habilitação). Os filhos dos inquilinos precisam de estar em algum sítio enquanto eles vão trabalhar para pagar contas, faz todo o sentido. Pior: normalmente, há administrações de condomínio que resolvem os problemas, não recordaram, porém, que estas empresas, às vezes recebem uns pequenos patrocínios dos Senhores Senhorios para gerir o setor.
Ouviu dizer que os médicos seriam aumentados do ponto de vista salarial e não lhe importou que estes profissionais estivessem demasiado cansados das horas extra que fizeram antes de lhes chegarem e, portanto, não é normal que façam greve e o não atendam – afinal de contas é mesmo para isso que servem os hospitais.
Ouviu dizer que os oficiais de justiça “recebem” bem e, portanto, não são compreensíveis as suas queixas.
Ouviu dizer que os Polícias recebem subsídios para poderem levar xutos e pontapés e que, se morrerem em serviço, os seus familiares ficam “bem na vida”.
Os pilares estavam há muito em sofrimento, foram ignorados por habitantes, inspetores assíduos na observação dos pilares; pelos Senhores Senhorios (bafientos, do alto do seu palanque, Senhores Senhorios da Democracia absoluta – mas não duma Democracia qualquer (!), só era Democracia aquela que era tida como sua!) e, finalmente, todos pereceram.
Ficaram os Senhores Senhorios, com todas as outras casas só para si. Afinal de contas, havia tantas outras para explorar.