É grande a perplexidade que me assola quando vejo deputados, sobre cujos ombros pesa a responsabilidade soberana de legislar com justiça e verdade, servirem-se de estratagemas para produzirem leis que podem obrigar a escola a mentir sobre a realidade e a formatar na falsidade o intelecto dos seus alunos. Refiro-me à mentira inserta na lei recentemente aprovada, segundo a qual há um sexo atribuído à nascença, mentira que sustenta toda a construção fantasiosa de medidas administrativas a tomar pelas escolas, supostamente para proteger o direito à autodeterminação da identidade de género dos seus alunos.
Entendamo-nos, senhores deputados proponentes de tal aberração! Todos sabemos que o sexo não é atribuído, seja por quem for. Todos sabemos que o sexo é definido pela biologia, segundo leis naturais a que os humanos não escapam. Não confundam ideologia de género com a realidade mais objectiva com que lidamos desde sempre: o sexo com que nascemos é natural, não atribuído.
É danosa a confusão, que esta lei facilita e promove, entre disforia de género e ideologia de género. A psicologia do desenvolvimento há muito que nos ensinou como as crianças e os adolescentes, nos momentos mais críticos da sua formação, são permeáveis às propagandas poderosas e insistentes, como é o caso da que tem permitido o crescimento da ideologia de género. Sabendo isto, a pergunta de partida que se impõe é esta: queremos entregar os nossos jovens a experiências de mudança de sexo, retalhando corpos e afundando-os em bloqueadores de puberdade e banhos hormonais, de que poderão arrepender-se mais tarde?
Na ânsia doentia de combater uma discriminação que não é evidente, esta lei acabará por gerar desrespeito pela privacidade de crianças e jovens com disforia de género, já que, podendo até retirar os pais da equação, institui e pretende envolver toda a comunidade escolar num vil mecanismo de vigilância e delacção, impróprio de uma sociedade civilizada.
Dito isto, reconheço que não são as verdades biológicas que devem presidir, dogmaticamente, à abordagem complexa de temas de orientação sexual ou de identidade de género. Longe de mim não aceitar o direito de um adulto a mudar de sexo. Mas essa decisão só deve pertencer ao próprio, desde que tenha atingido uma idade legalmente identificável com maturidade fisiológica, moral e psíquica.
Terão os problemas relacionados com a identidade de género nas escolas portuguesas dimensão que justifique a precipitação do PS para aprovar uma lei sobre o tema, no último dia de funções plenas do Governo? A terem relevância, serão esses problemas mais impactantes na vida escolar das crianças e dos jovens do que o enorme volume de aulas perdidas por falta de professores ou do que a análise das causas da derrocada nas aprendizagens, que o PISA 2022 e o resultado das provas de aferição puseram a nu? Terão os proponentes da lei acompanhado a evolução do debate e das medidas correctoras tomadas por países pioneiros na abordagem do tema, logo que percepcionaram os equívocos em que incorreram? Eis alguns, que nos devem pedir reflexão: a Suécia, pioneira nos direitos LGBTQ e primeiro país do mundo a autorizar a transição legal de género, em 1972, começou a restringir a terapia hormonal de afirmação de género para menores, alegando preocupações sobre os seus efeitos secundários a longo prazo. Em Dezembro de 2022, limitou as mastectomias para adolescentes que queriam fazer a transição para um ambiente de investigação, invocando a necessidade de “cautela”. (EuroNews, 16/2/23); o chamado protocolo holandês, há uma década considerado como a abordagem padrão para cuidar de crianças e adolescentes com disforia de género, recorrendo a medicamentos que bloqueiam a puberdade natural, a hormonas sexuais cruzadas e a cirurgias, foi considerado, por cientistas e responsáveis de saúde pública da Finlândia, Suécia, França, Noruega e Reino Unido, como podendo fazer mais mal do que bem. (The Atlantic, 28/4/23).
A concluir, e porque a lei produziu também doutrina e suscitou apaixonada discussão pública sobre balneários e urinóis, espero que o Presidente da República e o Tribunal Constitucional descarreguem rápido o autoclismo. Para que as crianças possam ser crianças e os pais tenham papel cimeiro no seu processo de crescimento.
In “Público” de 3.1.24