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A propósito de atentados e arrependimentos em educação – Carlos Marinho da Rocha

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No dia 19 de novembro, no seu editorial Arrependa-se, Mário Nogueira, Manuel Carvalho referiu-se ao pré-aviso da greve às horas extraordinárias, da Fenprof, como se tratando de “um grave atentado contra a escola pública, contra os alunos e, por consequência, contra o prestígio social dos professores”. Independentemente do que Mário Nogueira fez publicar no mesmo jornal no dia imediato, considero serem necessários alguns esclarecimentos. Note-se que este texto não quer ser uma apologia da referida greve ou a ela se opor, o seu objetivo é fazer uma arqueologia mínima do ponto a que chegámos e do porquê de haver razões para que esta greve possa ser hoje equacionada.

1. A greve ao sobretrabalho é, com sucessivos pré-avisos, uma luta da Fenprof, pelo menos desde fevereiro de 2019.

2. Todo o professor trabalha mais do que as 35 horas estipuladas. É inevitável. E no entanto não há horas extraordinárias a que se possa recorrer. A obrigatoriedade é a contratação. Dada a legislação, só no extremo limite horário pode um diretor atribuir trabalho suplementar.

3. A Lei n.º 7/2009, no seu Artigo 227.º, ponto 1, especifica que as horas extraordinárias não devem ser atribuídas para compensar demandas crescentes e contínuas de trabalho. Isto quer dizer que devem ser usadas apenas “em casos específicos e provisórios”.

4. Com certeza, há um segundo ponto que, enquanto segundo, admite a seguinte exceção: “O trabalho suplementar pode ainda ser prestado em caso de força maior ou quando seja indispensável para prevenir ou reparar prejuízo grave para a empresa ou para a sua viabilidade.” Apesar deste segundo ponto, o primeiro persiste em impor que isso ocorra em casos “específicos e provisórios” e não para compensar demandas crescentes e contínuas de trabalho.

5. Ora, nós estamos perante demandas crescentes e contínuas de trabalho. A ausência de professores não se resolve com horas extraordinárias, que apenas vão pesar mais num corpo docente já sobrecarregado e envelhecido e, finalmente, aniquilar de vez o professor e, com ele, a qualidade da escola pública.

6. Detenhamo-nos um pouco num exemplo, os cursos artísticos especializados (Conservatórios, António Arroio, Soares dos Reis). Estas escolas são orientadas por regras de matriz geral, aplicadas a outras escolas que não são especializadas, definindo-se um rácio para conceder o respetivo crédito horário.

7. Acontece que os professores das tecnologias, por exemplo, respondem perante a ANQEP, a Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional, cujos programas pressupõem entre três e cinco professores, conforme as especializações, com, inclusive por questões de segurança, um número reduzido de alunos por tecnologia. Sem estas tecnologias, escolas como a Soares dos Reis, no Porto, ou a António Arroio, em Lisboa, perderiam a sua razão de ser. Mas, ao serem contabilizados os docentes de tecnologias que respondem aos programas da ANQEP, o rácio professor/aluno que determina os créditos horários é perversamente desfavorável a estas escolas, que se veem coartadas nos apoios que podem de facto oferecer aos seus alunos. Paradoxalmente, a Escola Artística Soares dos Reis é também uma Escola de Referência para a Educação Bilingue, ou seja, para integrar, preparar e certificar todos os alunos, entre eles os alunos surdos e, por isso, necessita de mais recursos humanos e de um maior crédito horário.

8. Como necessita de mais e tem menos de facto, o que acontece é os professores terem de realizar atividades letivas, como as coadjuvâncias, na sua componente não letiva, quando na prática estaríamos a falar de horas letivas extraordinárias. E é assim, de exceção em exceção, que a tutela, no melhor dos casos por incompetência, persiste em mais sobrecarregar professores já sobrecarregados.

9. O ensino, em democracia, digo-o tristemente, nunca foi uma prioridade. Agora, é a ausência de professores, algo que já todos sabíamos e há perto de vinte anos que se anunciava. Consequência natural do desinvestimento – com duas honrosas exceções que ainda que tímidas, merecem o nome, Roberto Carneiro e Marçal Grilo – e de uma série, esses sim, de verdadeiros atentados contra a escola pública.

10. Desde Durão Barroso e, sobretudo, dos tristemente inesquecíveis governos Sócrates, era então Ministra de Educação Maria de Lurdes Rodrigues, que a educação passou de secundária a um autêntico campo minado de que era urgente desconfiar. Os professores eram o problema, não a solução. As escolas não funcionavam. Havia que pôr esses malandros a trabalhar e a escola, pois claro, à imagem de um passado que gostaríamos esquecido, sim, tinha que ter um diretor. Era a solução. Muitos diretores, felizmente, souberam manter vivo esse espírito de colegialidade que é fundamento do trabalho de uma escola.

11. Daí para os dois grandes pecados da “gestão” da educação (sendo a ideia de gestão, como se uma escola fosse uma empresa, um problema inaugural): o “menos é mais” e o “mais é melhor”, sim, os dois ao mesmo tempo, foi o inevitável salto.

12. “Menos” em termos hierárquicos e de recursos (não, não é menos hierarquia, bem pelo contrário). Um macro agrupamento onde antes havia escolas em rede informal. Um diretor onde antes havia um conselho executivo eleito. Menos professores (e neste parâmetro Nuno Crato brilhou), etc, etc, etc…

13. “Mais” em termos organizativos e de procedimentos. Mais alunos por escola, mais alunos por turma, mais escola a tempo inteiríssimo, mais burocracia intermédia, mais disciplinas (e, obviamente, menos carga horária, havendo várias disciplinas em que o professor está apenas uma vez por semana com os 28 alunos durante hora e meia), etc, etc, etc…

14. A agravar tudo isto, a maneira como se conseguiu desde David Justino, via ratings, desertificar escolas, doravante Líbias do Lumpenproletariat, favorecer descaradamente as escolas privadas aos olhos de pais atemorizados – uma forma particularmente cruel de desigualdade social – e criando-se pequeníssimos oásis protegidos de imitação do privado. Note-se que na maior parte dos países nórdicos, nomeadamente na Dinamarca, Finlândia, Noruega ou Islândia, cujo modelo educacional nos é repetidamente apresentado como exemplo, as escolas privadas são quase inexistentes, representando cerca de 3% da oferta e caraterizando-se estas por serem de projeto alternativo, com ou sem paralelismo pedagógico.

15. Sim. Tudo começa aqui, já com a escola empresa e com um “mais” e um “menos” perfeitamente deslocados da realidade, já com o desfavorecimento acelerado em que, pelo menos desde 2005, a escola pública caiu. Sobretudo, sem nunca perceber o que se faz nas nossas escolas e sem alguma vez ouvir realmente quem está no terreno: os professores (os próprios, os que fazem milagres todos os dias).

16. Voltando atrás. Com certeza, situações de exceção pedem soluções de exceção. Acontece que não estamos perante uma solução, mas perante remendos de alto custo que rapidamente vão romper pelas costuras. E a exceção foi longamente anunciada, de onde ter pouco de exceção e muito de falta de previsão e, sobretudo, de vontade política.

17. O trabalho suplementar não pode suprir a ausência de boa governação. O que o hoje se exige, não há corpo docente, mesmo com a melhor das boas vontades e a totalidade das horas extraordinárias possíveis, que o possa satisfazer. O que se exige é do campo do político, não da boa vontade.

18. A escola pública não consegue apagar todos os fogos. Sem novas políticas e investimento sério não há nem SNS nem escola pública que possam responder aos problemas atuais.