Se há termo que pode ser usado para caracterizar o início deste século, mudança seria uma escolha óbvia. Nas últimas décadas e por causa da inovação tecnológica, da globalização e da digitalização, assistimos a transformações profundas nas mais variadas áreas. Dos instrumentos de trabalho à forma de fazer política; da maneira como comunicamos, viajamos e socializamos até como nos entretemos e recolhemos a informação; da mobilidade às preocupações que entraram para a agenda das sociedades mais desenvolvidas, como o ambiente e a sustentabilidade. Mas há um espaço, curiosamente aquele onde o conhecimento é produzido e transmitido, onde as mudanças acontecem de forma lenta e muito gradual e onde o essencial da sua estrutura se tem mantido nos últimos séculos: a Escola, com as suas turmas fixas, currículos estanques, níveis de ensino, manuais escolares e testes escritos.
“O sistema de ensino, em geral, e a universidade, em particular, são muito conservadores e estão relativamente isolados dos choques tecnológicos. As carreiras académicas são longas e estáveis. Existe pouca pressão para o professor mudar. E, por outro lado, o método tradicional de ensino continua a funcionar (embora em alguns casos não tão bem como se desejaria), o que permite uma relativa estabilidade”, explica Arlindo Oliveira, professor universitário e presidente do Instituto Superior Técnico até ao final do ano passado. E é por isso que perduram métodos e matérias, resultando num “dinamismo relativamente baixo do sistema de ensino quando comparado com outras áreas de atividade”.
É já quase um cliché dizer que a escola funciona como no século XIX, com professores do século XX e alunos do século XXI. Mas além de alguma simplificação inerente a qualquer frase feita, há verdades indesmentíveis e sinais do choque entre um sistema de transmissão de conhecimento que se mantém na sua essência — a exposição dos conteúdos por parte do professor e uma plateia de alunos recetores — e as expectativas de crianças e jovens que nasceram no mundo digital e para quem a internet, os computadores, os telemóveis, o estar permanentemente ligado e contactável sempre foi uma realidade, com eventuais consequências na sua capacidade de concentração e de estarem quietos só a ouvir alguém.
“A velocidade com que hoje, qualquer pessoa, chega a qualquer informação é de tal forma rápida que as práticas que os professores podem desenvolver em sala de aula têm de se adaptar também a essa rapidez. O desfasamento entre as potencialidades trazidas pelas tecnologias e um contexto de escola mais clássico é que acaba muitas vezes por gerar desinteresse ou até a indisciplina dos alunos na sala de aula”, reconhece João Cunha, professor no Agrupamento do Freixo (Ponte de Lima). Quer a escola quer o docente foram distinguidos pela Microsoft como exemplos de inovação no ensino.
MENOS MEMÓRIA, MAIS SABER
Num mundo em plena quarta revolução industrial, em que a automação e a inteligência artificial vão tornando inúteis várias tarefas e fazem desaparecer profissões, ninguém defende nem antecipa uma diminuição da importância da escola e do professor. Mas todos reconhecem a necessidade de transformação. Como escreveu Arlindo Oliveira num artigo de opinião publicado no jornal “Público”, a “importância da memorização ou do domínio aprofundado de temas muito específicos, em determinadas áreas técnicas e científicas, caiu com a permanente disponibilidade de recursos especializados, acessíveis à distância de um telemóvel, de um computador ou de um programa que execute um determinado conjunto de cálculos”.
Dos vídeos no YouTube de matemática e ciências para crianças e adolescentes disponibilizadas pela Academia Khan, fundada em 2008, aos cursos online oferecidos por algumas das mais prestigiadas universidades como Stanford, Harvard ou Princeton, em áreas que vão da Inteligência Artificial à Ciência dos Dados, há um mundo infindável de aulas, tutoriais, explicações e formações disponíveis na internet, acessíveis em qualquer parte do mundo. De graça ou a preços bem mais reduzidos que uma propina normal.
“A profundidade do conhecimento não perdeu importância”, continua Arlindo Oliveira. Antes pelo contrário. “Mas tornou-se mais relevante ter a capacidade de procurar informação adicional e específica sobre determinados temas do que memorizar dados específicos, métodos ou algoritmos.” E, no entanto, quem tenha aprendido, por exemplo, na década de 80 do século passado e olhe para os currículos e os programas de hoje em diferentes áreas e níveis de ensino encontra mais semelhanças do que diferenças em relação ao que estudou então.
Mas este caminho para a “personalização do ensino, onde cada aluno aprende ao seu próprio ritmo, muitas vezes remotamente”, não é isento de riscos, alerta Pedro Brito, responsável na Nova School of Business and Education pela nova oferta e transformação da formação de executivos. “Se esse movimento cada vez mais generalizado pode traduzir-se numa incrível vantagem para o aluno na ótica da flexibilidade de acesso ao ensino, pode ser, simultaneamente, um enorme risco para o desenvolvimento pessoal. Afastar a pedagogia de uma comunidade, como é o caso de uma turma, e centralizando no ‘eu’, pode fazer crescer comportamentos narcisistas e antissociais, em detrimento do desenvolvimento de competências sociais.”
E nunca como agora ouvimos falar tanto da importância do conhecimento, aliado às soft skills, que poderão fazer a diferença entre ser-se recrutado ou preterido no acesso a uma determinada posição profissional. “A construção do futuro deve ser feita de forma coletiva, considerando múltiplas variáveis e impactos de curto e longo prazo, pela que a escola deve evoluir, mas nunca de forma leviana”, avisa Pedro Brito, rejeitando a “exaltação tecnológica” muito associada ao discurso sobre a escola do futuro.
IMPRESSORAS 3D, REALIDADE AUMENTADA E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Mas é também da introdução da tecnologia que já se faz a escola do presente e necessariamente as salas de aula e o ensino do futuro. Há vários anos que as superfícies de ardósia onde professores escreviam sumários e fórmulas e os alunos rabiscavam a giz as respostas foram substituídos, pelo menos nalgumas aulas, por quadros interativos. Acetatos e retroprojetores são coisa do passado. E em cima das carteiras estão muitas vezes laptops, tablets e telemóveis. Ainda que uma das discussões atuais seja sobre a possibilidade de utilização de telemóveis nas escolas. Em França, foram proibidos nalguns níveis de ensino. Por cá, há escolas que optaram por limitar ou impedir a sua utilização.
“Se queremos preparar os alunos para o mundo em que vivemos, temos de deixar entrar o mundo na escola, incluindo as tecnologias que os rodeiam”, defende Rui Lima, diretor pedagógico do Colégio Monte Flor, em Carnaxide, e também ele um professor inovador aos olhos da Microsoft. Mesmo que ao lado destes novos gadgets continuem a conviver manuais em papel e cadernos de exercícios. Estas velhas ferramentas parecem ser, aliás, das que mais tendem a perdurar imutáveis no sistema de ensino. “Ainda não tenho a certeza que venham a ser substituídos pelos tablets. Os alunos de hoje ainda se sentem muito à vontade a usar os cadernos”, vaticina Rui Lima. Tal como todos se sentem à vontade com a tradicional avaliação por testes escritos, como forma de mostrar o que os estudantes sabem ou não.
Este é outro dos aspetos que Rui Lima e outros professores acreditam que tem de evoluir: “Os alunos passam 12 anos mais o tempo da universidade a serem avaliados através de testes e exames, de uma forma que quase nunca acontecerá na sua vida profissional”, lembra.
O sistema de ensino, em geral, e a universidade, em particular, são muito conservadores e estão relativamente isolados dos choques tecnológicos
Um outro avanço certo passa pela introdução da inteligência artificial enquanto suporte do ensino, permitindo a professor e alunos perceber melhor quem e onde está a falhar, sugerir exercícios mais adequados a cada estudante, simplificando e complexificando tarefas consoante as capacidades demonstradas. “A inteligência artificial é uma ferramenta tecnológica que tem um potencial de utilização na educação fantástico e enriquecedor, mas que funcionará como a eletricidade na revolução industrial”, antecipa Pedro Brito. Ou seja, o homem, neste caso o professor, continuará a ser fundamental. Não tanto como transmissor único do conhecimento, mas como uma espécie de mentor, que orienta os alunos, ajusta planos de aprendizagem e vai aferindo o progresso dos estudantes.
Quanto à escola, o principal desafio é o de criar ambientes que consigam envolver e motivar os alunos. “No mundo atual, os alunos vivem num ambiente rico de experiências, recebendo de forma permanente inúmeros inputs externos. A escola tem que ter um ambiente igualmente motivador”, diz Cristina Carvalho, CEO da BCN, empresa que tem na Educação um dos seus mercados de atuação e que é responsável pelo desenvolvimento de muitas das chamadas ‘salas de aula do futuro’ que já foram instaladas em meia centenas de escolas portuguesas. “A tecnologia é um elemento motivador, mas não é suficiente. A organização do espaço tem um papel fundamental, pois permite fazer a transformação da sala de aula de um espaço estático preparado apenas para um ensino unidirecional professor-aluno, para um espaço dinâmico e colaborativo em que, tendo o aluno como elemento central, se pode adaptar a várias configurações, dependendo da atividade que se pretende desenvolver.”
No caso das salas de aula do futuro — tecnicamente chamam-se ambientes inovadores de aprendizagem —, os alunos não estão todos voltados para a frente, onde se posiciona o professor, podendo reorganizar-se consoante a tarefa que lhes é atribuída ou que os próprios determinam. Investigar, interagir, colaborar, desenvolver, criar e apresentar são as várias ações que devem compor a sua rotina escolar, mais prática e menos teórica.
Depois, há o recurso a velhos e novos instrumentos, como impressoras 3D, que permitem ver nascer quase instantaneamente o que se criou; robôs que permitem desenvolver competências tidas como fundamentais como programação e raciocínio lógico e computacional. Ou ainda a realidade virtual e aumentada que transporta a turma para qualquer sítio, desde uma comunidade remota a milhares de quilómetros ou para dentro do ouvido humano, por exemplo. Há bancadas amovíveis, as cadeiras têm rodas para facilitar a mobilidade e os quadros transformam-se numa espécie de tablets gigantes que promovem a interação entre professores e alunos, funcionando como uma unidade central à qual todos estão ligados, através dos seus tablets, portáteis ou telemóveis.
“Para que a escola acompanhe a evolução tecnológica e possa preparar alunos com competências para este século, não podemos continuar a ter salas de aula e espaços de educação como usavam os nosso pais e até avós. Todo o espaço tem de ser repensado e redesenhado”, continua a diretora da BCN. E nesta reconfiguração, até o mobiliário é fundamental. “Desvalorizá-lo ou não ter em conta na hora de conceber uma sala de aula é deixar tudo como está.” Uma simples cadeira pode complicar ou facilitar o processo. “Com o nosso parceiro Steelcase, desenvolvemos uma cadeira giratória em 360°, com mesa de escrita e base para guardar bens pessoais. Assim, deixamos de precisar de mesas e todos os elementos na sala passam a ser móveis, permitindo uma rápida reconfiguração”, exemplifica.
APRENDER TODA A VIDA
A questão, lembra Cristina Carvalho, é que de nada adianta ter ambientes inovadores se os professores não estiverem preparados para adaptar as metodologias de ensino aos novos espaços. “É essencial motivá-los para a necessidade de mudança e capacitá-los para conseguirem efetuá-la.” Reconhecendo que a classe docente “resiste um pouco a mudanças”, até porque no final os pais vão querer ver os resultados (leia-se notas no final do período) que daí resultaram, as alterações têm de partir das direções das escolas e dos professores. “Se essa vontade existir as práticas mudam”, diz João Cunha.
Mas o processo será sempre lento, reconhece Marco Bento, investigador na área da tecnologia educacional da Universidade do Minho e membro da MakeItPedagogical: “São 12 anos como aluno, três a cinco em cursos de formação de professores e quando o docente chega ao terreno aplica como viu fazer e como se sente mais seguro. E estes novos espaços trazem novos modelos pedagógicos, como a aprendizagem invertida, colaborativa, aprender com jogos, com base em metodologias e de projeto.”
Flexibilidade e interdisciplinaridade são outras tendências-chave da educação presente e futura. No ensino básico e secundário, as escolas começaram a ganhar alguma autonomia para fugir ao currículo partido em disciplinas com cargas horárias fixas. E no ensino superior é também esse o caminho que tem de ser seguido, defende Arlindo Oliveira.
No caso do Instituto Superior Técnico, por exemplo, foram já aprovadas várias alterações curriculares para entrar em vigor em setembro de 2021. Aprender através de projetos, aproximando os alunos de problemas reais e menos académicos, permitindo treinar competências de trabalho em equipa, organização e gestão do tempo e comunicação; flexibilidade dos percursos académicos, com a possibilidade de os estudantes escolherem disciplinas de outras faculdades da Universidade de Lisboa ou a inclusão de uma componente de ciências sociais e humanidades (recorde-se que a formação do IST centra-se nas engenharias) e a formação em inovação e empreendedorismo são algumas das novidades que visam modernizar o ensino e adaptá-lo às exigências do mercado de trabalho. No ISCTE, num exemplo daquilo que o Ministério do Ensino Superior quer que seja oferecido em todas as universidades, já foi introduzido uma disciplina de Ciência de Dados. Na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa aposta-se também em áreas que tradicionalmente não estão dentro de uma escola de gestão e finanças, como data science e sustentabilidade.
Sendo certo que num mundo em permanente mudança e avanços tecnológicos, com empregos que desaparecem e funções que surgem, a ‘ida à escola’ não poderá continuar a ser encarada como algo que apenas se faz em criança e jovem e que fica circunscrito no tempo. “Este contexto de mudança exige das pessoas uma atitude proativa na atualização contínua de competências e conhecimentos, para que se mantenham relevantes no mercado de trabalho.” A formação ao longo da vida será cada vez mais importante e é também a um público mais velho, com passagens mais ou menos curtas no sistema, que a escola do futuro terá de se adaptar.
Fonte: Expresso