NOTA PRÉVIA
Sou, como é óbvio, 200% a favor da reposição integral do “tempo congelado”, ainda que de modo faseado ou convertido em tempo de bonificação para a reforma. É, creio eu, sobejamente conhecido o meu pensamento relativamente a essa matéria. Estou também com os sindicatos, na generalidade das suas reivindicações. Todavia, no meu entender, o que é mais cancerígeno para a classe está fora das prioridades hasteadas, que acabam por se instalar na opinião pública como bandeira dos nossos problemas mais prementes e das nossas preocupações maiores.
Vamos imaginar ― por mero exercício teórico ― que, subitamente, o Governo decidia dar provimento às principais reivindicações dos sindicatos (recuperação de todo tempo de serviço, reposicionamento justo na carreira, progressões… remoção do amianto… regime de gestão… fim do processo de municipalização…). Os professores ficariam, com certeza, muito contentes com essas conquistas. Contudo, quanto tempo duraria esse efémero e superficial júbilo? Estou convencido de que seria mesmo muito fugaz. Passado o compreensível momento de euforia ― como o de uma festa que nos amordaça, com luz e cor, a negrura da vida por um dia ― depressa voltaria o céu cinzento-escuro que, há muito, tolda o quotidiano docente: o trabalho vão, as tarefas inúteis, as ofensas continuadas, as desconsiderações, o desrespeito, a hostilidade cada vez mais frequente e generalizada, os olhares perdidos no vazio, as lágrimas sufocadas, a melancolia entranhada no ser até às raízes do ego, as frustrações, a depressão… Enfim, as fissuras na alma, as cavernosas dores que nos conduzem aos psiquiatras, às baixas médicas e aos desesperados desejos de evasão e abandono, de ilusão multiface, da mais dourada à mais lunar.
As principais causas do burnout docente ― contrariamente à ideia que passamos para a sociedade ― não coincidem com as prioridades da nossa agenda reivindicativa. E enquanto esta nossa luta se perpetua, elas enraízam, vão mais fundo, invadem e apoderam-se da nossa essência. Comparado com esta autêntica leucemia pessoal e profissional, o que andamos a exigir, nas greves e nas manifestações e outras ações de luta, é um conjunto de minudências, que quem decide vai protelando, gerindo, de modo a ir cedendo no assessório, lentamente, enquanto adultera, paulatina e minuciosamente, o genoma e a imagem social do Professor.
Os sindicatos não estão vocacionados para esta frente de combate nem têm condições ― a vários níveis ― para travarem esta luta dual. Enfrentam, com denodo, os monstros mais corpulentos, mas desguarnecem, naturalmente, as estreitas frinchas por onde entram os invasores mais subtis e letais. Podemos mesmo acabar por vencer os primeiros, mas já estamos sucumbir ― lenta, solitária e silenciosamente ― devido à corrosiva ação dos segundos.
Ordem, Já!
Do que ficou dito na primeira parte desta reflexão ― “A leucemia docente” ― resulta uma conclusão insofismável e de consequências muito nefastas para o corpo docente: a sociedade, em geral, e os encarregados de educação, muito em particular, olhando para os grandes estandartes da nossa luta, tendem a considerar que as nossas grandes causas, são interesseiras e egoístas (carreiras, progressões…). É uma ideia falsa, na sua essência, mas absolutamente real nas consequências que produz.
Contrariamente ao que fazem os médicos, por exemplo, que têm a sageza de hastear sempre ― na frente da linha da frente da sua luta ― o bem-estar e os interesses dos doentes, demitindo-se frequentemente de cargos de chefia e de coordenação, invocando a impossibilidade de garantir os mínimos que a sua deontologia lhes impõe, nós, os professores, ainda que tão preocupados como os médicos com aqueles que dependem da nossa ação, não temos sabido ser nem tão assertivos nem tão corajosos. Hasteamos apenas as bandeiras “menores”, e prolongamos-lhes o eco ad eternum, e jamais nos demitimos, apesar de, há muito, os limites mínimos dos mínimos do que são os reais interesses das crianças e jovens que educamos e ensinamos, terem sido barbaramente abalroados. Não nos demitimos nem enquanto meros professores ― com ou sem cargos de coordenação ― fazendo tudo o que nos mandam fazer, nem na qualidade de diretores, ainda que com muito mais responsabilidades em todo este processo de sujeição da classe e de degradação da Escola Pública. Há demissões, devido a incompatibilidades “domésticas”, mas jamais por questões de ordem ética, pedagógica, de consciência… Enfim, abdicamos do topo da pirâmide, porque ainda andamos cá por baixo a tratar do rés do chão.
Indignamo-nos com a falta de cumplicidade e de solidariedade dos encarregados de educação e da sociedade relativamente “à nossa luta” (na qual integro o trabalho quotidiano), mas não devemos surpreender-nos. Afinal, nós não temos sido capazes de lhes mostrar o verdadeiro âmago deste nosso combate contra a destruição da Escola Pública; não temos sido capazes de evidenciar e de priorizar, nos nossos estandartes e nas nossas bandeiras, as alegorias do prejuízo instrutivo e educativo que as últimas reformas tem causado aos filhos da Nação. Do vasto e cavo sofrimento que nos come a alma diariamente, apenas temos sabido exteriorizar uma pequena parcela, que a sociedade interpreta como extravagante expressão de egoísmo. É falsa, mas ― repito ― absolutamente real e fatal nas suas repercussões.
É urgentíssima a criação de uma Ordem de Professores e Educadores. Já era urgente há uma década, quando o assalto à qualidade da Escola Pública se tornou mais criminoso e descaradamente mais assumido. Sem esta firewall, vamos continuar a mendigar migalhas e a perder estatuto, prestígio e dignidade profissional. Somos, a cada dia que passas, mais técnicos operacionais do ensino e menos pedagogos. Os nossos alunos, consequentemente, ficam cada vez mais expostos aos interesses economicistas, à ignorância e ao atrevimento de quem, em determinada conjuntura, ocupa as onerosas cadeiras do poder. Aqueles que mais carecem do inestimável serviço prestado pela Escola Pública vão ficar, consequentemente, cada vez mais vulneráveis, menos capazes, com menos ambições reais e expectativas socioprofissionais. Não podemos, por isso, contar com a solidariedade efetiva dos prejudicados.
Os sindicatos devem, no meu entender, ser braço direito nesta suprema exigência. Devem colocar-se, de forma proativa e colaborativa, ao lado daqueles que já pugnam por essa conquista. Devem abrir as portas do seu “monopólio” reivindicativo e participar, sem partidarismos cegos, atávicos e egoístas, no estímulo e na criação deste “superego” de que a classe e eles mesmos tanto carecem. Não são efetivamente capazes ― tal não é possível ― de combater eficazmente nestas duas frentes tão desiguais. Enquanto vão somando pequenas conquistas, no seu território predileto, o corpo docente e o produto da sua ação pedagógica estão a ser inexoravelmente destruídos. São necessários sentinelas e combatentes ― permanentemente ― nestes dois palcos indissociáveis e vitais: aquele que os sindicatos sabem e podem defender e aquele que tem estado na retaguarda, ao abandono e à mercê das intromissões abusivas, dos ataques criminosos e, mais recentemente, até da desprezível troça de quem desmanda.
Aos sindicatos o que é dos sindicatos, à Ordem o que é da Ordem. Mas ousemos criá-la, todos juntos, com urgência e ousadia. E talvez, então, as alegorias que agora figuram nos nossos estandartes se tornem menos difíceis de conquistar. Nem sempre as retas são os caminhos mais curtos entre dois pontos.
Fonte: https://cronopiocontumaz.blogspot.com