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A escola e o século da solidão – Paulo Prudêncio

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É fundamentada a conclusão que nos diz que antes da pandemia já vivíamos o “século da solidão” (Noreena Hertz, 2021). A solidão era transversal e incluía os mais jovens.

E à medida que saímos do túnel da pandemia – um acelerador de fenómenos -, mais intuímos efeitos contraditórios: à euforia do restabelecimento das ligações humanas, contrapõe-se o tempo do isolamento físico com a escola no centro das análises e dos debates. E acima de tudo, e do desafio inscrito pelo digital, sublinhe-se que há um dever de optimismo através da ideia de deixar um mundo melhor.

E a escola, que é, quase por definição, uma instituição desafiada para um novo rumo apesar do recomeço anual inspirado no mito de Sísifo, é um espaço de renovação de gerações que espelha a formação da personalidade dos mais jovens. É um vulcão de esperança que também integra conflitos e contradições. Amor, ódio, ciúme, amizade, inveja, mentira, boato, alegria e tristeza são exemplos de categorias intemporais essenciais ao desenvolvimento do homo sapiens que a cibersociedade amplia. Os professores são mestres na moderação e usam o ensino para elevar o exercício e a democracia. Daí serem imprescindíveis.

Não sabemos se estamos numa encruzilhada. Dá ideia que a escola navegará entre o possível e a ilusão. No caso escolar português, e de resto nas nações com turmas numerosas, há objectivamente riscos de ilusão. Se olharmos para o recente Plano de Recuperação de Aprendizagens (PRA), a elementaridade impôs-se. Não se alargou ainda mais o calendário escolar e destinou-se para a educação cerca de 3% dos 15 mil milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência. É da norma e da lógica orçamental. Mas é no interior desta letargia que se captam sinais de que talvez não se distinga a aparência da realidade.

Desde logo, há dois decréscimos muito críticos que permanecem abaixo da linha de água: a natalidade, em que Portugal perdeu 18.280 estudantes (cerca de 1,1%) dos ensinos básico e secundário no ano lectivo anterior e 328.682 alunos (cerca de 17%) na última década, e a falta estrutural de professores. O anúncio de mais 3300 professores no PRA é ilusório face ao “êxodo” em aposentações; e, como se sabe, os jovens nem querem ouvir falar em ser professor. Por isso, urge enfrentar o que existe. Se é obviamente impensado desejar que a quebra da natalidade seja tão acentuada que reduza substancialmente o número de professores, é ilusório acreditar que o digital os substituirá ou que se recorrerá com eficiência, como nas décadas de 70 e 80 do século passado, a profissionais doutras áreas.

Posto isto, diga-se que o assunto é sério e premente. Além do longo caminho a percorrer no sentido inclusivo dos territórios, das sociedades e das escolas que contrariam fenómenos de guetização porque aglutinam populações de diversos grupos sociais como o factor decisivo para o elevador social, é fundamental contrariar a sobreposição do isolamento físico sobre o gregário e agarrar com as duas mãos o que controlamos. Perceba-se que o universo escolar, através das plataformas escolares – que já vigiam e controlam – associadas às da digitalização dos recursos didácticos, estará à mercê dos algoritmos até ao nível 4. Mas isso significará um mundo pior na “era do capitalismo de vigilância” (ShoShana Zuboff, 2020), se na transição digital se reduzir a liberdade e a democracia. Será o percurso da servidão e da solidão. E as nossas escolas recuaram muito na última década no clima democrático.

Portanto, quando se pensa no futuro do bem comum numa nação que se espera justa e igualitária, defende-se como imperativo a escola da gestão de proximidade e da estruturação dos princípios fundadores da ciência e da razão. Deseja-se um número crescente de ligações humanas em ambiente inquestionavelmente democrático. E isso só depende da nossa vontade. E se a escola portuguesa se emaranhou, neste século, em políticas de contracção radicalmente antagónicas nos pressupostos, importa dar corpo a uma simplificação organizacional centrada no professor com carreira digna, sem avaliação kafkiana, com democracia na escola e que receba um testemunho de confiança.

Mas tudo isto não parece suficiente para elevar a esperança e contrariar a solidão e a adição tecnológica das crianças e dos jovens. Há um universo decisório descolado da realidade que dispensa a redução de alunos por turma e por professor, que não sistematiza a ideia de escola com currículo completo, que não diferencia os espaços onde os alunos aprendem, estudam, pesquisam ou socializam, que não reconhece dignidade ao tempo de intervalo escolar e nem sequer identifica a exigência do tempo de aula ser diferente em função da disciplina a leccionar e da idade dos alunos.

É crucial recuperar a ideia de possível, de pedagogia e de escolas bem dimensionadas com soluções diferenciadas. Alias, a interdisciplinaridade, tantas vezes anunciada e testada em diversos modos organizacionais, só não é ilusória se assegurar todas as possibilidades na construção de projectos sustentáveis que considerem o perfil dos professores todos – sem qualquer exclusão, portanto, nem sequer dos imprescindíveis cépticos ou dos essenciais avessos a modismos -. Deseja-se um ambiente inclusivo, autónomo e responsável para que se inove e se consolide o gregário e a democracia. Mas para isso, é fundamental que o professor e a pedagogia reassumam a liderança da gestão escolar propriamente dita. Ou seja, é indispensável que se sintetize e ultrapasse a incomunicabilidade das ciências da educação com as da gestão e administração.