Se as aulas tivessem começado na quinta-feira, cerca de 100 mil alunos teriam pelo menos um professor em falta. É esta a conclusão a que se chega olhando para a lista de horários (1357) que até ao final desta semana continuavam por atribuir e para os quais as escolas estão à procura de candidatos.
Regra geral esta espécie de anúncios (chamados ofertas de escolas) são publicados pelos estabelecimentos de ensino de cada vez que um horário fica ‘vazio’, ou seja, para o qual não apareceram candidatos entre os professores que estão nas listas nacionais de recrutamento ou que foram recusados. E não havendo professores interessados nesses horários, as escolas têm então de passar para a contratação direta, inclusivamente de profissionais com formação superior, mas não específica para dar aulas.
É impossível antecipar se este ainda será o cenário no final da próxima semana quando arranca o ano letivo. Hoje são conhecidos os resultados das colocações nacionais da segunda reserva de recrutamento (a primeira aconteceu na última semana de agosto e deixou 1377 horários por atribuir, os tais que passaram, entretanto, para a fase de contratação direta pelas escolas). Mas é possível comparar a situação atual com a do mesmo período do ano passado. A conclusão é esta: a uma semana do início das aulas, as dificuldades em encontrar professores, pelo menos em algumas regiões, aumentaram e o número de horários que não foram preenchidos à primeira tentativa mais do que duplicou, estima Davide Martins, professor de Matemática e colaborador do blogue de Educação “DeArlindo”.
Uma consulta à lista das ofertas de escola permite saber que desde final de agosto até esta semana já foi pedido um total de 1878 horários (contabilizando apenas os que têm oito ou mais horas letivas e que não tiveram professores disponíveis nas listas de reserva de recrutamento), correspondendo a 32.400 horas de aulas. No mesmo período do ano passado, estavam por preencher 1280 horários, com um total de 14.500 horas.
Esta quinta-feira de manhã, os dados mostravam que havia um total de 1357 horários por atribuir, correspondendo a mais de 15 mil horas de aulas. Assumindo que as disciplinas têm uma carga letiva média de três horas por semana e que cada turma tem 20 alunos (contas por baixo), o número leva a estimar que mais de 100 mil estudantes do ensino básico e secundário teriam algum professor em falta se as aulas começassem agora, calcula Davide Martins.
A situação está longe de afetar todo o país por igual. Se no norte e centro praticamente não existem problemas, nos distritos de Lisboa, em particular, mas também Setúbal, Faro, Santarém ou Beja são várias as escolas a sentir dificuldades na substituição de professores. Esses problemas começaram a fazer sentir de forma mais premente há cerca de três anos e tendem a acentuar-se à medida que o envelhecimento do corpo docente se agrava (fazendo aumentar as reformas, mas também as baixas por doença) e o custo da habitação dispara. É que a maioria das necessidades de professores estão a sul e a maioria dos potenciais candidatos estão a norte. E os custos de uma deslocação afastam muitos deles.
MESES SEM PROFESSOR
A Secundária Rainha Dona Amélia, em Lisboa, é apenas um dos exemplos. Ontem, tinha horários por atribuir em oito disciplinas. Ainda assim, o tom é de otimismo perante os muitos telefonemas de potenciais interessados, levando a diretora a acreditar que as vagas serão preenchidas até ao início das aulas. “Português, Matemática e Geografia são as disciplinas com as situações mais difíceis”, assinala Fátima Lopes. Quanto aos professores que se estão a reformar, e que geram ainda maior pressão, a diretora admite que esse não é, para já, o problema da escola, mas que o “grande volume” de reformas acontecerá a meio do ano letivo, antecipando para 2024 um regresso às aulas ainda mais complicado.
A mesma experiência é partilhada por outras escolas do país e, em alguns casos, o passado ano letivo já foi difícil na contratação de professores. No início desta semana, o Agrupamento de Escolas Romeu Correia, em Almada, tinha horários por atribuir a “praticamente todas as disciplinas”, incluindo completos (de 22 horas letivas, abrangendo várias turmas), e o diretor, António Mateus, admitia que a situação estava pior. “Tenho mais horários sem professor nesta altura do que no ano passado.” E se a grande maioria dos casos é resolvida em três semanas, como garante o ministro da Educação, noutros a situação arrasta-se há meses.
“Cheguei a ter uma aposentação de um professor de Português em fevereiro ou março e já não consegui preencher o horário até ao final do ano letivo. E estava em causa uma turma do 12º ano…”, conta ainda António Mateus. Quando não aparecem interessados, muitas vezes as escolas partem os horários em menos horas e redistribuem-nas pelos professores da casa, em horas extraordinárias ou sacrificando tempos dedicados a outros projetos e cargos.
A sul, os relatos não diferem: “Neste momento, em toda a zona sul do país, que vai de Portalegre a Faro, temos 15 mil alunos afetados pela falta de professores”, afirma Maria João Sales, do Sindicato dos Professores da Zona Sul (SPZS), que faz parte da Fenprof, frisando a dificuldade em encontrar docentes em áreas como a Informática, mas também Físico-Química, Matemática, Biologia ou Português. “São disciplinas centrais no ensino secundário, que é muito prejudicado por esta situação.”
A sindicalista lembra que a distribuição de horas extraordinárias pelos professores da escola — um recurso que nos últimos dois anos foi usado já com as aulas a decorrer — está a ser aplicada este ano. “Esta distribuição de serviço pôde ser usada logo no início deste ano letivo e, portanto, é um recurso já esgotado.”
VÁRIAS DISCIPLINAS SEM PROFESSORES PARA LISBOA
Por regra, o recrutamento de professores é feito através de uma lista nacional, que ordena todos os candidatos, consoante a sua graduação profissional (nota de fim de curso e tempo de serviço). De cada vez que há uma situação de baixa médica ou aposentação, é desta lista (uma para cada disciplina) que é retirado o professor para ocupar esse lugar que fica vazio. No passado ano letivo, foi necessário concretizar quase 30 mil substituições e a verdade é que nestas listas de reservas de recrutamento constam ainda cerca de 19 mil professores.
Problema: nem todos estão disponíveis para aceitar lugares que surjam longe da sua residência, sobretudo se tal implicar alugar um quarto ou uma casa que consome praticamente todo o salário. Uma análise a estas listas feita por Davide Martins mostra que pelo menos a quatro grupos de recrutamento do 3º ciclo e secundário — Português, Matemática, Biologia e Geologia e Inglês — já não existem mais candidatos disponíveis para horários que surjam no Quadro de Zona Pedagógica 7, correspondente à região de Lisboa, desde Vila Franca de Xira até Sesimbra. Assim como já não existem no grupo de Geografia para escolas do Algarve. No Oeste e Vale do Tejo e em todo o Alentejo também há sinais de alerta, com as listas perto de esgotarem a diferentes disciplinas.
O que é que isto significa? De cada vez que aparece uma necessidade nova, as escolas destas zonas vão ter dificuldades acrescidas para encontrar um professor e poderão ter de recorrer a diplomados sem formação pedagógica para dar aulas (mestrado em ensino). Para alargar o leque de candidatos, o Ministério da Educação definiu a formação científica mínima que permite a um licenciado ser contratado para dar aulas a uma determinada disciplina, baixando os requisitos face ao que existia anteriormente.
A aposta passa também por atrair mais jovens para os cursos que formam professores e nos últimos dois anos o número de colocados em licenciaturas em Educação Básica, por exemplo, aumentou 45%. Contudo, ao mesmo tempo, há um elevado número de docentes a entrar na reforma. Segundo os dados da Caixa Geral de Aposentações (CGA), o aumento tem sido progressivo desde 2019. Em setembro deste ano já tinha sido ultrapassado o total registado em 2022. Quer em setembro quer em outubro, os números rondaram as 350 saídas.
Segundo um estudo recente, será preciso recrutar um total de 34.500 docentes entre 2021 e 2030. “O número de aposentações, que este ano deverá chegar a um recorde de 3500, está a fazer-se sentir nas escolas. E não há 3500 novos professores para colocar. Não se fez a preparação para este boom”, lamenta a dirigente do SPZS.