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Reabertura das creches. “São lugares de afetos. É impossível existir distanciamento social”

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Portugal prepara-se para começar a levantar as restrições impostas pelo estado de emergência. São muitas as estratégias que estão a ser delineadas por estes dias, para que o País possa começar a voltar, gradualmente, ao seu funcionamento habitual. E um dos temas que têm levantado mais controvérsia é a questão da reabertura das creches, com o governo a prever que isto aconteça já em maio, apesar de ainda não existir uma data concreta.

Mas apesar de muitos portugueses terem de voltar ao trabalho nos tempos mais próximos, e existir uma necessidade da reabertura dos estabelecimentos de ensino, são muitos os pais de crianças em idade de creche que estão contra esta medida, existindo já uma petição a correr as redes sociais para impedir a abertura das creches e não só, com mais de 20 mil assinaturas.

Mas será que existe uma forma de garantir a segurança das crianças? Estão as instalações destes locais preparadas para a reabertura com novas medidas de proteção de alunos e funcionários? Ou a abertura destas instituições vai ser sinónimo de um aumento de casos?

Para tentar perceber todas estas questões, a MAGG foi falar com quatro educadoras de infância, e todas foram unânimes. Maio é cedo demais para pensar em abrir as creches.

“É impossível existir distanciamento social”

Muito antes do primeiro caso do novo coronavírus surgir em Portugal, já as palavras “distanciamento social” e “lavagem de mãos” eram repetidas até à exaustão. Afinal, e para além do isolamento voluntário, estas são as medidas mais eficazes para travar a propagação do vírus. E é justamente aqui que começam os problemas quando falamos de reabrir as creches, local onde estas medidas são extremamente complicadas de aplicar, ou mesmo impossíveis.

“As creches são lugares de afetos. É impossível existir distanciamento social na creche, seja entre crianças e adultos, ou entre as próprias crianças”, diz Marta Parracho, 37 anos, educadora de infância, à MAGG.

Apesar de reconhecer a necessidade de a vida voltar ao normal e ser necessária a abertura de algumas entidades, para Marta Parracho é um erro começar pelas creches, justamente porque aqui não se verificam os tais principais critérios que o governo considera fundamentais para o funcionamento das instituições.

“Falo do distanciamento social, em primeiro lugar. Na creche, temos um rácio de dois adultos para cuidar de 15 a 18 crianças. É impossível manter distanciamento, não há como, até porque os miúdos não têm consciência disso”, diz Marta Parracho.

A educadora de infância Vanessa Biléu, 32 anos, partilha da mesma opinião. “É impossível limitar o contacto dos miúdos. Estamos a falar de crianças com idades compreendidas entre os 4 meses e os 3 anos, em que é totalmente impossível distanciá-los uns dos outros. Numa sala com 12 crianças de ano e meio, por exemplo, como é que mantemos metade de um lado da sala e a outra metade no outro? Não dá, elas não percebem.”

Para além da dificuldade em separar fisicamente as crianças, Vanessa Biléu acrescenta que essa separação pode ser contraproducente para os miúdos. “Seria um choque muito grande para eles, serem impedidos de estar em contacto com os seus pares, educadoras, auxiliares. Não temos estruturas físicas nas creches para levar a cabo esta separação, nem faz sentido”, afirma a educadora.

Outro dos critérios para impedir a propagação do vírus é a lavagem frequente de mãos, sendo que falar de lavagem eficaz em crianças tão jovens é, para estas educadoras, um mito.

“Sabemos que a higienização frequente das mãos é fundamental para evitar o contágio, mas as crianças em idade de creche descobrem o mundo através das mãos e da boca, e isto refere-se a tudo o que as rodeia. Pessoas, outras crianças, materiais, brinquedos, chão, paredes. Mesmo que se introduza uma rotina de lavar as mãos com mais frequência, não será com certeza aquela que é a ideal para impedir a propagação do vírus”, explica a educadora Marta Parracho.

Vanessa Biléu também refere a necessidade da exploração dos mais novos, e o efeito que isto tem na limpeza das mãos: “Um bebé com 2 anos tem de explorar o que está à sua volta. Mesmo que as mãos estejam completamente lavadas, a criança tem um brinquedo na mão, leva à boca, volta para as mãos, e passado um minuto esse brinquedo está nas mãos de outra criança. Acho que é percetível o cenário. Não há lavagem de mãos que funcione”.

Para a educadora, que refere que no seu local de trabalho já existia uma forte limpeza e desinfeção dos espaços e brinquedos, intensificar estas rotinas não vai ter um grande efeito.

“As crianças pegam nas coisas, metem à boca e é impossível controlar a propagação de um possível vírus. Para dar um exemplo, por mais cuidados que tenhamos, quando temos uma criança com varicela numa sala, passado uma semana ou pouco mais, não raras as vezes, temos o nosso grupo quase todo a faltar com varicela em casa. Teríamos de estar numa base de um adulto para uma criança para evitar isto, o que é impossível e também acaba por não fazer sentido.”

O mesmo aplica-se ao uso de máscaras. “Alguém me explique como é que pomos uma máscara numa criança de 1 ou 2 anos, quando às vezes temos dificuldade em colocar um chapéu”, salienta Marta Parracho.

“O refeitório onde estão dezenas de crianças a comer é o mesmo refeitório onde são feitas as refeições para o apoio domiciliário”

Apesar de as crianças mais novas não serem consideradas um grupo de risco para a COVID-19, e de serem também a faixa etária que apresenta menos complicações face a esta doença, o grande perigo destes miúdos é a possível ausência de sintomas, que os pode tornar em veículos silenciosos de propagação do vírus.

“Se eu tiver uma criança assintomática numa sala, ela vai contaminar as outras, que vão contaminar os pais, e por aí fora. Também vai contaminar os profissionais que trabalham nas creches, e o ciclo de contágio vai intensificar-se”, refere Vanessa Biléu.

A educadora alerta que este contágio pode ganhar proporções ainda mais graves, dado que muitas pessoas que trabalham nestas instituições, desde as educadoras até ao pessoal auxiliar e da cantina, são mais velhas e “podem pertencer a grupos de risco”.

Para Marta Parracho, as cantinas são também um foco de contágio muito perigoso. A educadora explica que muitas creches em Portugal são instituições particulares de sociedade social (IPSS), que têm na sua constituição outras valências sociais como apoio domiciliário, por exemplo.

“O refeitório onde estão dezenas de crianças a comer é o mesmo refeitório onde são feitas as refeições para o apoio domiciliário, onde os funcionários vão levantar as refeições para entregar às pessoas que necessitam do apoio, que são muitas vezes idosos e fazem parte do grupo de risco. Logo aqui existe uma sobreposição dos universos que o primeiro-ministro não quer que aconteça, quando justifica a decisão de abrir as creches para depois retomar as aulas presenciais dos alunos do ensino secundário, os tais universos opostos. Mas na própria creche, já está a acontecer uma sobreposição. Acho que se está a esquecer disso.”

Sem qualquer dúvida, ambas as educadoras de infância são da opinião que a abertura das creches em maio é uma decisão prematura. “Acho que devíamos esperar mais, é precipitado abrir já”, diz a educadora Marta Parracho, tendo em conta que “todos os critérios que nos garantem a não propagação do vírus não são exequíveis de ser realizados” na creche.

No entanto, a educadora de infância acredita que a abertura já em maio pode ter outro motivo. “Eu sei que nós não estamos todos em casa para prevenir o contágio, mas sim para atenuar a curva e para que isto aconteça de forma gradual. Por isso não sejamos hipócritas, se calhar o que se quer com isto é mesmo contagiar e começar pelos mais pequenos, que não têm uma taxa de complicações tão grande.”

“Se for decretado, temos mesmo de abrir”

Caso o governo português decrete a abertura das creches nas próximas semanas, as instituições já estudam medidas para que este regresso seja feito da forma mais segura possível — mas as educadoras de infância referem que tudo isto é muito complicado.

“Percebo a necessidade de abrir as creches. Há pais que precisam de regressar ao trabalho, também entendo o porquê de começar pelos mais novos, que à partida, terão pais mais jovens, que não são tão afetados pela doença. Mas em termos práticos, não vejo como fazer esta abertura em segurança”, explica à MAGG Teresa Ferreira, 41 anos, educadora de infância.

No entanto, se o decreto for para a frente, Marta Parracho acredita que deve existir um levantamento das instalações que têm as mínimas condições para reabrir.

“Se for decretado, temos mesmo de abrir, mas há situações que se devem ter em conta. É preciso fazer uma avaliação criteriosa das condições que as instalações têm para abrir, a nível das condições físicas e dos recursos humanos. Porque temos de ter em conta que há profissionais com filhos mais velhos, cujas escolas não vão abrir, e esses têm de permanecer em casa.” Para esta educadora, também é fundamental uma “higienização eficaz” das instalações, bem como a “formação da equipas de limpeza”, que devem ser aumentadas em recursos humanos e materiais.

Vanessa Biléu, que conta à MAGG que está frequentemente a acompanhar grupos de educadores nas redes sociais, refere que alguns colegas começam a delinear e a partilhar medidas que estão a considerar para as suas instituições, mesmo antes de saírem diretrizes oficiais.

“Medir a febre à chegada, não deixar os pais entrarem, sendo a entrega das crianças feita à porta, intensificar as limpezas e manter uma relação honesta entre pais e profissionais sobre os possíveis casos nos núcleos são algumas das medidas discutidas. Mas com a possibilidade de os miúdos serem assintomáticos, não sei até que ponto serão eficazes.”

Dado que, para já, as crianças do pré-escolar não vão regressar às instituições, e nos casos de instalações que possuam as duas valências, dividir os miúdos pelas salas dos mais velhos também pode ser uma medida útil, bem como “canalizar as educadoras e auxiliares da pré para existir um maior número de adultos para cuidar das crianças”, diz Teresa Ferreira.

A educadora também partilha que já ouviu falar da possibilidade de os educadores e auxiliares usarem fatos de proteção e máscaras para interagir com as crianças, mas alerta que isso pode ser prejudicial para os mais novos.

“Não sei como é que iam reagir a uma situação dessas. As crianças pequenas gostam de rotinas, que lhes transmitem segurança. Se são confrontadas com algo estranho, acabam por não reagir bem. Não sei se será uma situação tranquila”, afirma a educadora de infância.

Pais e educadores de infância contra a abertura das creches

Apesar da intenção do governo de reabrir as creches nas próximas semanas, não são só os educadores de infância que salientam as falhas e os perigos desta medida — também são muitos os pais que se mostram contra. “Temos pais muito conscienciosos que estão contra a abertura das creches”, diz Vanessa Biléu. “Há inclusive uma petição a circular nas redes sociais para impedir a reabertura.”

Para a educadora, esta atitude generalizada dos pais das crianças pode ser positiva, caso exista uma obrigatoriedade que ordene a abertura de portas. “Acho que muitos pais vão continuar com as crianças em casa, talvez por ainda estarem em teletrabalho ou com crianças mais velhas a cargo, e isso pode jogar a nosso favor, sendo possível gerir melhor a questão com menos miúdos. Mas isso é uma coisa que não podemos impor.”

Para além dos pais que já assinaram a petição pública, também há educadores de infância a tentar que a sua voz seja ouvida pelos organismos governamentais. Maria de Fátima Aresta, 52 anos, com uma experiência de mais de três décadas enquanto educadora de infância na creche e pré-escolar, escreveu uma extensa carta aberta a várias entidades, apelando para que estas instituições permaneçam encerradas.

Tal como partilhou com a MAGG, a carta escrita a 22 de abril foi enviada para a Presidência da República, para o gabinete do primeiro-ministro, para o ministro da Educação e para a Direção-Geral da Saúde, entre outros. “Já recebi um e-mail do gabinete do primeiro-ministro, com a indicação que tinham encaminhado a carta para a chefe de gabinete da ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social”, revela Maria de Fátima Aresta.

No documento a que a MAGG teve acesso, a educadora de infância escreve estar certa de que existem “uma infinidade de vozes consonantes” com a sua, e apela a que o governo entenda a posição da sua classe profissional. Maria de Fátima Aresta também escreve que “a abertura progressiva é um erro”.

“De que adianta, oferecer serviços para uma resposta deixando as outras em stand by? Se ainda assim se considerar que a abertura deve ser progressiva, é um erro começar pela creche. Os educadores de infância e os auxiliares de educação devem ser mobilizados em simultâneo, sendo que os educadores e auxiliares de creche apoiariam os educadores de pré-escolar, de forma a aumentar o rácio adulto-criança, facilitando assim a regulação de comportamentos adequados à situação vigente”, escreve a educadora de infância.

Fonte: Magg